Dr. T e as Mulheres,
de Robert Altman


Dr. T And The Women, EUA, 2000

Não é novidade nenhuma a tese de que uma obra de arte pode ser analisada como uma cebola, onde se escolhe quantas camadas vão ser retiradas, ou seja, o quanto se vai mergulhar nos significados e ambições de cada uma. Claro que há obras e obras, como há cebolas e cebolas, e algumas mais facilmente se prestam a este "destrinchar". Pois bem, quando Robert Altman lança um filme e ele é quase que em sua totalidade recebido como um "filme menor", já é motivo para se estar de orelhas em pé. O quanto estes analistas se dispuseram a destrinchar a nova cebola de Altman? Porque a cada filme se há um cineasta que parece sofisticar cada vez mais sua linguagem é Altman. E o interessante é que sua maturidade caminha não para uma sofisticação no que a crítica mais rasa costuma enxergar (uma linguagem rebuscada, grandes simbologias de botequim, discursos seríssimos, filosofias de almanaque). Mas sim numa pesquisa cada vez mais profunda das possibilidades do próprio cinema comercial em utilizar-se das técnicas mais populares de diversão para carregarem no seu cerne uma visão de mundo altamente pessoal e humana. A cada filme "menor" Altman está em contato mais direto com este cinema popular (e, em especial, a chave da comédia, sempre desprezada como "menor"), com esta tradição norte americana tão forte que é o "entertainment".

Comecemos portanto daí: obra menor, uma ova! Neste novo filme, Altman bebe da fonte das "screwball comedies" no seu ritmo, no seu clima constantemente surreal e "over", e constrói uma farsa aparentemente inconsequente para tratar de um dos temas mais batidos da humanidade, mas poucas vezes explorado de forma tão sutil: a impossibilidade real de entendimento entre os sexos. Os universos completamente distintos que habitam homens e mulheres, e as mal sucedidas tentativas de penetração (sem qualquer trocadilho), em especial do homem no universo feminino.

Mas, a grande sacada de Altman está escondida nos créditos iniciais: trata-se de um filme sobre este assunto dirigido por um homem, mas escrito por uma mulher! Ou seja, o tempo todo, fica claro no script uma compreensão profunda desta impossibilidade, que só o insight feminino de quem observa as constantes e hilárias tentativas do homem de lidar com as mulheres pode ter. Mas, se este filme fosse dirigido por uma mulher seria possivelmente uma chata brincadeira feminista, ou na melhor das hipóteses um tapa na cara masculina como o são os recentes A Prisioneira de Chantal Akerman e Fogo Sagrado de Jane Campion. O diferencial de Altman é assumir este ponto de vista feminino ao filmar como um homem. A auto-ironia que ele acaba trazendo ao projeto é de tamanha inteligência e sutileza, que ele consegue disfarçar as verdadeiras intenções do projeto numa forma farsesca e palatável. E ao encenar um roteiro tão genuinamente feminino, ele reconhece a sua própria impossibilidade de ser agressivo, e é apenas irônico, pois ele está inserido no que o filme trata.

Dois outros golpes de mestre estão logo no primeiro plano: fazer do seu personagem principal um ginecologista, e não só isso, mas interpretado por Richard Gere! Poucos ícones são mais fortes no imaginário do contato homem/mulher do que o ginecologista, que talvez tenha o mais profundo contato com esta diferença sexual primordial. Tanto o desconforto feminino quanto a tara masculina são encarnados por esta figura. Quando se traz Richard Gere, não só um símbolo sexual, mas principalmente um homem no qual as mulheres confiariam (um Brad Pitt ou um Tom Cruise como ginecologista talvez falassem às fantasias sexuais femininas mais carnais, mas não trariam a carga de confiança dos cabelos grisalhos de Gere) para ser este ginecologista, está tudo preparado para o truque de Altman. No primeiro plano, um traveling em torno de uma mulher sendo examinada, que só no final revela Gere entre suas pernas, tanto a fantasia masculina do ginecologista é atiçada, quanto, ao ser revelada a identidade, todas as mulheres da platéia sentem-se automaticamente "vingadas" pela exposição da cena.

E o filme todo transcorre neste tom: com Gere sendo construído como o homem tipicamente atípico. Ele consegue transpor a barreira que separa os sexos em dois universos diferentes. A ele se permite transitar das caçadas entre amigos (a maior representação da empatia masculina no imaginário norte americano) até os ambientes dominados pelas mulheres, dos quais o mais óbvio é seu consultório, um verdadeiro zoológico dos hormônios femininos em fúria. Ele parece trazer sempre a voz da razão, a capacidade de dizer sempre a coisa certa, seja com mulheres, seja com homens. Durante todo o filme é esta a armadilha que Altman monta: Gere como o derradeiro "homem sensível", bom pai, bom tio, bom amigo, bom amante, bom marido, em suma, bom.

Neste ponto algo deve ser dito sobre a ambientação que Altman constrói. Em tons quase "fellinianos", ele cria um universo feminino exagerado, expansivo, emotivo, à beira de um ataque de nervos (ou no meio dele). Alguns viram nisso um exagero, talvez até um estereótipo. Ora, nada mais tolo, pois o exagero e o estereótipo não existem "per se". Deve-se analisar se eles existem apenas pela piada, ou se possuem auto-crítica, se no contexto do filme têm razão de ser. E aí, só pode criticar Altman quem não olhar o filme como um todo. O filme enxerga o universo feminino de forma tão louca quanto... bem quanto um homem possa ver, por não conseguir ler ou compreender aqueles códigos de conduta. Pois bem, o filme é visto pelo ponto de vista do Dr. T, portanto, um ponto de vista eminentemente masculino (um alter-ego inclusive do diretor). E se o Dr. T parece tão compreensivo, a caracterização das mulheres é a pista dada ao longo do filme de que mesmo ele mal consegue ultrapassar a carapaça externa dos clichês femininos, que a alma do que seja a mulher está escondida até mesmo dele.

Um outro parêntese deve ser aberto aqui, quanto à relação muito particular de Altman com o imaginário norte-americano. Porque quem não conheça um mínimo sobre as características típicas deste, não pode ter um olhar efetivo sobre as sutilezas e nuances da composição de Altman. Em toda sua obra, o diretor consegue incutir um tamanho carinho e crítica simultaneamente ao que signifique "ser americano" que pode-se fazer estudos e mais estudos só sobre este aspecto. Assim como os irmãos Coen, a cada filme Altman radiografa uma região diferente dos EUA, e vai buscar nos exageros a chave do carinho e do respeito pelo caráter único destes espaços, sejam eles Nashville, Hollywood, ou no caso deste filmes, Dallas, Texas. Embora possa-se passar pela cebola sem esta camada, seria limitado não ver a importância do ambiente, do local (tanto país como cidade) no jogo de significados que Altman cria.

Voltando ao filme, então o diretor constrói uma narrativa que é uma verdadeira armadilha no sentido de passar uma idéia de um homem que vai compreender o específico feminino, criando um conforto para espectadores masculinos ou femininos. Armadilha criada e estabelecida, ele parte para seu "grand finale", apoteótico, e desconcertante como poucos. A partir do tão planejado casamento da filha, Altman cria uma desconstrução de personagem na figura do Dr. T digna de um Zé Celso. Os 15 minutos finais são alguns dos mais deliciosamente surreais e coerentes do cinema americano moderno. Neles, tudo que o Dr. (e a platéia) acreditavam ser um possível consenso entre os sexos, revela-se uma reles cortina de seda destroçada pelo primeiro vento. A filha foge com uma amiga para consumar seu amor lésbico no altar, a mulher rechaça por completo a racionalidade do casamento, até que a amante finalmente dá o choque final na auto-estima masculina (ao contrário de todo um imaginário machista de Atração Fatal e afins, onde o homem é o centro de tudo), ao revelar que o maior sonho da vida dela NÃO É fugir com ele, que ele era apenas um caso na vida dela e pronto. Destroçado, ele é literalmente varrido por um tornado (cujas formas lembram imensamente às de uma vagina), que o arremessa a um mítico deserto de um quase western (com direito a novelos de galhos secos passando ao vento), onde ele terá contato com a verdadeira dimensão da diferença homem/mulher: o parto, a capacidade de gerar uma vida.

Ali, fecha-se o ciclo do Doutor T: face a face com uma vagina, como no primeiro plano (desta vez a vagina é mostrada em close, afinal por algum bizarro desvio na sexualidade humana ela não é obscena quando tem uma criança saindo de dentro, mas fora isso não pode ser mostrada...), ele finalmente percebe a impossibilidade da sua missão. A diferença primordial que separa os sexos é maior que qualquer manual de compreensão entre eles possa supor. Não há possível entendimento, nem deve haver. O que há é a convivência que pode ser harmoniosa ou não entre dois universos distintos. A odisséia do doutor o leva a este momento, no qual um bebê sai do corpo de uma mulher, e ele grita: "Itīs a boy!" ("É um menino!"), fechando o ciclo e relembrando, numa homenagem final ao feminino, que os homens vêm delas, antes de tudo. E este verdadeiro tratado sobre a convivência e a incompreensão básica entre os sexos consegue vir numa embalagem absolutamente respeitosa do poder do entertainment, da comédia. E ao final, o grande golpe de Altman é intitular seu filme Dr. T e as Mulheres. Na verdade, ele seria "As mulheres e o Dr. T", onde o doutor somos todos nós homens.

Eduardo Valente