Do Inferno, de Albert e Allen Hughes

From Hell, EUA, 2001

Lá pelos idos dos anos 80, Alan Moore, escritor de histórias em quadrinhos, se juntou a Eddie Campbell para escrever uma graphic novel – que é o nome das HQs sérias, para adultos – sobre Jack, o estripador. Jack, é bem sabido, foi talvez o primeiro serial killer da história, tendo matado algumas prostitutas com precisão médica, na década de 90 do século XIX, isto é, em plena era vitoriana. O fato de o sujeito ter demonstrado conhecer anatomia muito bem aliado a mais alguns detalhes bizarros do caso, como as prostitutas assassinadas todas se conhecerem, algumas pistas estranhas e ainda a agravante de o assassino nunca ter sido descoberto somam material suficiente para que o caso seja motivo de comoção na Inglaterra até hoje, passados aí um pouco mais de 100 anos desde os crimes; há uma literatura enorme sobre o assunto e especialistas a escorrerem pelas paredes quando se fala nos assassinatos de Jack, que empresta seu nome, inclusive, – na verdade o nome de sua prática – a uma "ciência", a ripperology, algo como estripadorologia, ciência a que se dedicam todos esses "especialistas". Bom, tendo se debruçado sobre todo esse material, Moore construiu a sua própria teoria sobre o assassino em série e a partir dela escreveu From Hell, grande sucesso editorial na época e de novo agora, quando do lançamento do filme feito a partir dela. Ao filme, então.

Os diretores, os irmãos Hughes foram os autores de uma proeza incrível: um filme sobre Jack, o estripador em que este é punido e onde, apesar de todos os assassinatos brutais cometidos, há um final feliz. As primeiras cenas já dão o tom: a vizinhança de White Chappel, um dos bairros mais pobres e violentos à época em Londres, é de uma afetação só; há sempre muitas pessoas na rua, cada uma agindo – e aparecendo – de forma mais repugnante que a outra, para que se tenha a todo momento em conta de que se trata realmente de um lugar onde coisas más acontecem. Há inclusive um gato, que sempre que um novo lugar aparece, passa correndo, enxotado ou fugindo, soltando um miado altíssimo. White Chappel, inacreditavelmente, também não tem cores, mas apenas tons de cinza, ao contrário dos lugares ricos ou ainda do lugar onde há a redenção final, a Irlanda, em que os mais diversos matizes cromáticos pululam da tela. E é para esse lugar detestável que Johnny Depp, o investigador Abberline – figura história, assim como a maioria das personagens –ao ser escalado para o caso das prostitutas assassinadas, vai e onde começa a perceber fatos curiosos a circundá-lo. A partir daí a fita tem estrutura de whodunit, aquele tipo em que o que importa é a descoberta do bandido, de quem cometeu a ação e para isso não são poupados esforços para que a trajetória de Abberline seja a de um detetive dos clássicos filmes policiais americanos. O sujeito, um melancólico que vive pelos bares a beber (absinto) e se drogar (ópio), sempre com muito estilo, se lança de corpo e alma no mistério e no afã de descobrir o assassino, acaba por se apaixonar pela testemunha/quase vítima Mary Kelly (Heather Graham, por demais inverossímil em sua bela e limpa figura como prostituta do pior lugar de Londres, ainda mais quando é rodeada pelas colegas, todas maltratadas e destruídas), descobrir que há um superior seu envolvido no caso e ainda perceber que o único que se dispôs a ajudá-lo era ele mesmo o assassino. Há até uma perseguição de carros – quer dizer, de carruagens, mas que fazem todo tipo de estripulia que carros em fuga nos filmes policiais – perto do final, em que o culpado tenta acabar com a vida de Abberline.

Falávamos há pouco que Jack é descoberto e punido. Mas não é apenas isso. A trama que envolve seu nome e seus crimes é fabulosa e veio emprestada de algum ripperologist: diz ela que o príncipe Abert teria se casado com uma prostituta e tido um filho com ela; devido à ameaça que um filho bastardo representaria para o reino, a Rainha mesma ordenaria que fosse eliminada a mulher e quem mais soubesse do caso, isto é, as prostitutas suas amigas. Nesse caso, o assassino seria William Gull (Ian Holm), médico real; mas no filme dos irmãos Hughes, talvez para não sustentar uma acusação tão pesada quanto o envolvimento da rainha em um dos casos mais escabrosos da história inglesa, não só ela não sabia que as moças estavam sendo mortas de uma maneira tão bárbara como Gull agia sozinha e porque teria enlouquecido. Isto é, teria encarnado o puro mal. Haveria também alguns indícios de que Jack fosse maçom, a saber, os cortes feitos nas vítimas e ainda algumas mensagens mandadas à polícia; pois no filme ele é mesmo maçom, mas não há envolvimento de espécie alguma desta sociedade nos crimes; aliás são eles mesmos que punem Gull no fim, tirando dele a razão através de três marteladas em sua cabeça. Não obstante tudo isso, a última mulher assassinada não era realmente Mary Kelly, que teria fugido para a Irlanda (!), sua terra natal, com a menina filha do príncipe (!), onde estaria levando uma vida simples, a vida de seus sonhos, como atestam as cenas finais; e isso, somente isso basta para que o filme tenha um final feliz (!), ainda que uma outra mulher tenha sido estripada no lugar de Mary.

Tudo em Do Inferno é equivocado, da fotografia moderninha à direção de arte, passando pela realização do roteiro, que não poderia ser pior; ou então o que dizer de Joseph Merrick, o homem-elefante, que em determinado momento simplesmente aparece sem ter nada, eu digo nada a ver com o resto da narrativa? Assistir a este filme nos faz pensar, sem medo do trocadilho infame, o quão apropriado é o seu título.

Juliana Fausto