Desmundo, de Alain Fresnot

Brasil, 2002

Na primeira cena de Desmundo, nós vemos a chegada ao Brasil de quem logo entenderemos ser um grupo de jovens órfãs trazidas para servir de esposas aos colonizadores, e mães de seus futuros filhos (o tempo nos é anunciado por um crédito: cerca de 1570). Na última cena, depois de todo o desenrolar da trama ficcional, nós temos a imagem de um bebê. A metáfora, bastante clara mas nem por isso desinteressante, explicita o desejo maior do filme: mostrar a concepção e o nascimento de um povo, formado por uma muito pouco "pacífica" miscigenação e convivência tanto entre raças quanto entre gêneros. Não se trata do primeiro objeto artístico a se imbuir desta missão (jogar luz sobre o nascimento de sua nação), pois se pensamos só na retomada do cinema nacional pós-1994 podemos citar desde Brava Gente Brasileira a Caramuru, passando por Hans Staden (isso ficando restrito a uma forma artística e uma época bastante curta). Portanto, se o filme de Fresnot (baseado, é claro, no livro de Ana Miranda) não chega a lidar com tema inédito, a pergunta que devemos fazer é: seu tratamento traz consigo um específico que, mais do que o distinguir dos outros, o torne relevante? Neste ponto, há vitórias e derrotas a creditar ao filme.

Entre as suas principais qualidades, uma sobressai: Desmundo (e nisso é interessante notar que também se poderia dizer o mesmo dos filmes de Lúcia Murat e Luiz Alberto Pereira) nunca tenta ser "espetacular" ou auto-importante no seu sentido de reconstituição histórica. Isso é especialmente agradável por se tratar de filme com cuidadosíssimo senso de pesquisa, e ao mesmo tempo um orçamento bastante razoável (geralmente, quanto maior o orçamento, maior a necessidade sentida de "justificá-lo" com grandes imagens de muitos figurantes ou suntuosas reconstituições). Desmundo segue por um caminho quase oposto: a fotografia de Pedro Farkas, sem deixar de ser adequadíssima sempre, não tem medo de lidar com cenas de grande grau de escuridão, e imagens mais subentendidas do que iluminadíssimas. Muito adequado, com certeza, ao ambiente da época. Esta noção de adequação à época, aliás, perpassa todos os itens do filme. O mais notável exemplo é o cuidado com o idioma falado então, o que aliás algumas vezes acaba resvalando num certo excesso preciosista que mais distrai a atenção e engessa algumas atuações do que exatamente ajuda o filme (afinal, OK que ninguém falasse com gírias dos anos 90, mas em não sendo obviamente um documentário, toda e qualquer "apropriação" menor seria plenamente passável se ajudasse o filme, o que não parece que os meandros desta língua mestiça faça exatamente – podia-se trocar um pouquinho de "Verdade histórica" aqui por agilidade narrativa e de encenação, no melhor sentido da palavra agilidade).

Esta referida "anti-espetacularização" se repete, ainda, na condução da narrativa, e aqui funciona como a popular "faca de dois gumes". O filme, por um lado, evita o tipo de construção mais clássica e batida de dramas e acontecimentos intermediários levada num desenvolvimento em clímaxes e anticlímaxes constantes, trabalhando mais num mesmo tom, por assim dizer, contemplativo, onde uma das mais bem sucedidas ferramentas usadas são as várias elipses temporais. Mas, é fato que se pode dizer que todos os personagens (desde Oribela a Francisco, passando pela mãe e Ximeno, o judeu), a partir do momento em que entram em cena, deixam bem claro quais suas principais motivações e que função cumprirão na narrativa. Os momentos em que se escapa a isso (como quando Francisco confessa suas fraquezas a Oribela) são poucos, e não utilizados no seu potencial. O resultado é que pode-se afirmar que funcionam muito mais como "emblemas" do que personagens, no sentido mais individualizante mesmo do termo.

Este tratamento da narrativa, que desta forma deveria se tornar muito mais implícita (e podemos, mais uma vez, lembrar Hans Staden como um outro exemplo semelhante), certamente exige um domínio de noções muito pouco práticas e muito mais "sensoriais", como ritmo, fluência e rigor. E aqui, Fresnot revela ainda algumas limitações, menos por incompetência e muito mais porque sua aposta é realmente bastante alta e corajosa. O filme acaba escapando do controle em vários momentos, e escorrega numa certa falta de consistência que faz o espectador acabar recorrendo a uma necessidade de elementos mais "clássicos": a identificação/empatia com os personagens é pouca (mesmo Oribela nunca se aproxima do espectador – o filme em alguns momentos assume uma certa primeira pessoa no seu olhar de forasteira, mas o abandona em tantos outros), e por isso mesmo a conexão com o drama que se desenrola na tela acaba menor do que o desejado. Na tentativa ousada de ser anti-espetacular, o filme acaba caindo em muitos momentos na frieza, menos na analítica e mais na distanciada. Para uma história que nasce de atos muito pouco racionais, e sim altamente instintivos e violentos, a indiferença de quem assiste nunca é boa.

No entanto, o que não se deve perder de vista nunca é que Desmundo, mesmo aonde erra, erra justamente por querer alcançar bastante. E, afinal, é sempre melhor lidar com isso do que com a completa falta de ousadia e com a obviedade. Quando acerta (e isso acontece várias vezes, como nas cenas finais ou na introdução à vila), Desmundo é muitíssimo interessante.

Eduardo Valente