Bicho de Sete Cabeças,
de Laís Bodanzky

Bicho de Sete Cabeças, Brasil, 2000


De boas intenções o inferno deve estar abarrotado... Bicho de Sete Cabeças é só mais um exemplo:

Aclamado no Festival de Brasília e de Recife, premiado aos borbotões, o filme de Laís Bodanski decepciona desde o início aqueles que esperam uma abordagem nova sobre a temática das internações manicomiais. Mais: abusando de uma ingenuidade simplista, o filme cai em moralismos baratos em que, através de um drama pessoal espera "desmascarar" uma realidade de horrores...

O suposto retrato de uma realidade manicomial no Brasil acaba numa perigosa ferramenta argumentativa que Laís utiliza sem o menor cuidado e o máximo de determinismo. O filme todo é um grande determinismo: lá está o pobre garotão injustiçado, seu pai ignorante, o maldito sistema que se aproveita dos dois como um parasita... Ao comprar a bandeira de Carrano (autor do livro-biografia), Bodazski parece ter só se preocupado em reproduzir a força da denúncia a que o livro se propunha. Apesar de ter visitado alguns hospitais e ter participado de uma pesquisa sobre a realidade manicomial no Brasil, a diretora acabou se saindo com uma perigosa e irregular condenação dos manicômios como antros de atrocidades quase medievais.

Desde as primeiras imagens do manicômio de Bicho, fica clara a intenção de chocar, de retratar o absurdo. Sua linguagem de câmera documental cai na velha armadilha de querer dar credibilidade ao que se está vendo – como se seu filme não fosse um recorte de realidade, mas um representante panorâmico de um sistema cruel... Os médicos no filme são tratados como figuras de terror, não só de atitudes equivocadas mas como indivíduos mal-intencionados, carregando assim o mote do vilão que sabe que está fazendo o outro sofrer. É um absurdo ver um filme transformar um sistema complexo de relações que se estabelece dentro de um manicômio numa disputa sádica entre médicos e pacientes-vítimas. O filme extrapola o ridículo da ignorância ao, através de uma montagem generalizante, passar a idéia de que todos os ali internados seriam vítimas de medicação dopativa: "...de tanto aloperidol!" Ao invés de ir aos miúdos da relação loucura/normalidade, o filme tenta simplificar tudo com a simpatia bobo-alegre de seus coadjuvantes e com a maldade massacrante dos médicos. Fazendo dos internos malucos-gente-boa e dos médicos burocratas mal intencionados, Laís e Luis (roteirista) esquecem que nada é assim tão simples – os algozes e as vítimas não são tão claros – esse é o moralismo do filme: achar que encontrou culpados e vender seu personagem como o símbolo da incompreensão que está em torno dos estigmas da loucura.

O filme não consegue encaminhar a questão para um campo mais delicado, imbricado de diversos valores que vão muito além da ignorância do pai do protagonista e da brutalidade dos enfermeiros-grosseirões... Se uma história como a de Carrano acontece e sem raridade (segundo a entendida diretora...), não pode ser tratada como fruto de uma vilania do sistema – é extremamente pobre e ditatorial um filme que se pretende estar mostrando a realidade dos manicômios como ela é de fato. Laís não assume no filme o fato de estar tratando de uma história específica de falta de comunicação entre pai e filho, acaba caindo na marmelada de um suposto retrato da realidade como um todo e perde a questão mais interessante de sua narrativa. Aliás, há de se dizer que todo o simplismo com que se trata a relação paciente-médicos no filme é substituída por uma sensível discrição quando se trata da relação do jovem com seu pai. Com certeza, as melhores passagens do filme estão ali.

Se há firmeza na direção e boa conduta da trilha sonora na ambientação do filme, esses são desperdiçados em um roteiro/decupagem primitivos em sua tentativa de mimese.

Concluindo-se numa lição de moral às avessas, o que temos diante de nós é uma ferramenta simplista de vendagem de uma bandeira – repito: uma vendagem, e não uma argumentação! O filme não desenvolve o tema loucura/internação – apenas remonta um drama unilateralmente e se esquece que o "maldito do sistema", seja ele qual for, tem também sua lógica e sua verdade . Acreditar que o outro, aquele de quem se discorda, não passa de um cruel vilão da sociedade é uma estupidez sem tamanho – filmes desse tipo podem ser feitos vendendo muitas coisas, seja qual for sua intenção: seja o suposto discurso libertário do filme, seja exatamente o contrário. E aí está o perigo do filme de Laís – maquiado pela excelente e moderníssima trilha sonora, pela bela fotografia, a montagem dinâmica e as excelentes atuações naturalistas, Bicho de Sete Cabeças é uma armadilha: quer tratar de um tema complexo não através da argumentação, mas de iscas visuais e sonoras que peguem o espectador (a classe-média brasileira em geral) pelo estômago! Sente-se pena do protagonista, "meu deus, que absurdo!", e é isso que o filme procura: falar da crise do sistema manicomial brasileiro como um melodrama familiar e generalizá-lo como uma bandeira.

Não se pode esquecer nunca que o moralismo da contra-moral é também um moralismo; e que a ideologia tratada de forma cega será sempre uma ferramenta nociva e perigosa. Laís e Luís erraram na mão por achar que o fato de estarem se baseando numa biografia de quem viveu aquilo poderiam ter certeza do que falavam. Esqueceram que mesmo nas experiências concretas de nossas vidas, erguem-se os parâmetros pessoais e subjetivos de codificação dos fatos. Os dados chocantes que Carrano conta (como suas 21 sessões de eletrochoque) podem sim ser vistos como sinais fortíssimos de um sistema manicomial que está falindo - mas nunca, nunca mesmo, como sua condenação definitiva, como se disséssemos assim: "Veja, ele é o culpado, olha só, nós filmamos!" O moralismo é sempre perigoso em sua detenção da arrogante Verdade... Mesmo quando está nas mãos firmes e bem-intencionadas de uma jovem cineasta brasileira...

Felipe Bragança