Beleza Americana
de Sam Mendez



American Beauty, EUA, 1999

Cabeças e travesseiros

Vivemos em um mundo cínico. Para além de todas as previsões de Balzac que, ao falar de imprensa, visualizava um futuro dominado pela consciência do poder e do mau uso do mesmo, vivemos um mundo cuja descrição das coisas alcançou um patamar de correção de tecnicidade tal que não existe mais lugar para a inocência. A consciência da corrupção das estruturas, antes relegada ao lugar da revelação e da leitura de entrelinhas agora faz parte da rotina diária e da agenda de acontecimentos, da lógica habitual. A denúncia não é mais denúncia, porque não é feita mais por investigadores, mas por assessores de imprensa. Vivemos na era dos escândalos programados.

A sociedade americana, como totem maior da cultura mundial, é o lugar definitivo desse novo desenho de relação com a problemática da moralidade e da constituição das instituições sociais. Ela produziu nos últimos anos um entorpecimento tal na cultura mundial, com a exportação de um modelo de entretenimento, um sistema de entre-ter, de ter-entre, de manter o indivíduo entorpecido entre dois momentos de reflexividade, que se tornou capaz de ditar a maneira mesmo como ele se olha.

O modelo que aparece aí é o de uma consciência a tal medida dos problemas sociais que leva ao extremo de relegar a possibilidade de resolução deles para o plano do fantasioso ou, no mínimo, da inocência. E essa inocência assumiu um sentido pejorativo, negativizado. Ser inocente não significa não ser culpado, significa ser tolo. É a lógica do "as coisas estão ruins, mas não se pode fazer nada para mudar, porque o sistema é poderoso demais, então nada farei. Pensar o contrário seria inocência demais".

Esse argumento, que não se presta a outra função senão permitir que quem o use possa dormir à noite, é, em grande parte, o resultado do sistema de entorpecimento com que a cultura americana, com sua "ditadura do prazer" (Guillebaud, 1998) produziu no mundo. Mas ela, ao se produzir no mundo, produziu um outro efeito interno, que vem aparecendo fortemente nos últimos tempos e quem tem sido o principal assunto da pauta que uma das mais fortes indústrias dos Estados Unidos, a corporação "opinião pública".

Os dois ou três últimos anos têm sido um descortinar de mazelas morais dos Estados Unidos para si mesmos e para o mundo: o que o presidente americano faz com estagiárias e charutos, o que os pais fazem com os bebês em casa, o que os rapazes guardam em seus armários, qual o calibre das armas que rapazes de 15 anos levam para a escola, perguntas que se tornaram a pauta da discussão diária de uma sociedade que, ao passar para o plano da cultura o modelo de hegemonia territorialista que decidiram seguir, viu produzir em si o efeito de uma totemização da fantasia a respeito de si mesma.

American Beauty é um produto dessa nova pauta. O filme parte do empréstimo de "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis (o personagem central já está morto e narra sua história de algum lugar, como voz onipresente) para fazer uma espécie de retrato da sociedade americana. E ele parece querer partir para a questão "o que aconteceria se, no seio da sociedade americana, o império mundial, a sociedade que lidera o mundo, começássemos a falar a verdade?".

A resposta a essa pergunta vem sendo dada pela mídia, que resolveu colocar na tevê e nos jornais, há três anos, as mazelas dos Estados Unidos. Mas o filme resolve dar tom dramatúrgico a isso (porque dramático, já era). O projeto do filme é algo como "abrir as entranhas da sociedade americana e revelar o que está corrompido".

Mas o que o filme produz de fato é uma enorme sensação de contradição, um paradoxo mesmo. Primeiro porque assume uma estética americana, no mal sentido: usa os métodos que quer denunciar. É, no final das contas, um Dawson's Creek ácido, um Popular regado a marijuana, um Beverly Hills 90210 com pretensões anárquicas. Pretensões apenas. Isso porque a cara de um grande episódio de qualquer uma dessas séries, novelões americanos fica impressa de maneira forte demais. De fato, não acontece muita coisa no filme que não pudesse acontecer (e mesmo que já não aconteça) em algum episódio de um dessas séries. De fato, é quase como se, ao ouvir "All along the watchtower", de Jimi Hendrix, maneira que o filme encontra para manifestar seu suposto tom crítico e anárquico, ouvíssemos Paula Cole cantando "I don't wanna wait for our lives to be over, I want to know right now what it will be", versos do tema de abertura de Dawson's...

Por isso, o que acaba acontecendo em American Beauty é o paroxismo de um estranho modelo de espetáculo que os americanos desenvolveram: um certo "politicamente incorreto de almanaque", algo como uma anarquia padronizada, uma forma industrial de fazer estranhamento.

Tudo em American Beauty é padrão: o marido infeliz padrão (com a ótima interpretação de Kevin Spacey, é verdade), a esposa insatisfeita padrão (que chega a lembrar, por exemplo, a mulher fake de Truman, em The Truman Show, a adolescente estranha (que poderia a menina do Cape Fear de Scorsese) e impopular padrão, a amiguinha popular (mas fraudulenta) padrão de todas as séries de tevês, o vizinho estranho, moralista (mas fraudulento) padrão, o rapaz que provoca a mudança de olhar padrão. O desenlace da história (que não é surpreendente em si, uma vez que é anunciado) segue mesmo o mecanismo padrão: a morte é provocada por uma crítica-padrão e o assassino é o criticado padrão.

Isso faz do filme um conjunto de sistemas de dissimulação em vez de denúncia. De uma maneira não tão brilhante quanto Molière, que com suas peças sobre os nouveaux riches, em defesa da monarquia, apresentava a burguesia em ascensão, este Sam Mendez, apresenta a sociedade americana, com suas feridas, e, mais que isso, apresenta um personagem que resolve seguir à margem dessas feridas, para finalmente levar sua dor ao máximo e curá-las, mas não para de fato resolver o problema, e sim para diluí-lo. A televisão trouxe a podridão para a pauta, o cinema a levou para a fantasia.

O filme mesmo joga com seu realismo usando a câmera de vídeo do rapaz que vende maconha. Absolutamente clean, o personagem filma tudo que acontece em torno dele, em busca da suposta "beleza" (que é americana, parece), algo que habita tudo que é estranho, tudo que é bizarro, tudo que se mostra conflituoso no seio da sociedade dos Estados Unidos. As imagens em vídeo parecem querer conferir certo tom ao mesmo tempo documental e ao mesmo tempo familiar (porque lembra vídeos domésticos). Nos dois casos, é um efeito de veridicidade o que se busca.

Mas é sofismo puro. Não é uma análise da sociedade americana. É a transformação dela mesma (a análise) em anti-análise, no sentido em que, em vez de optar por uma história efetivamente analítica, usa uma sintética: iconiza os personagens e a problemática moral.

É claramente o produto de uma industria que, ao produzir produtos, detecta a presença de defeitos inevitáveis e irreparáveis neles e, para não perder uma fatia de mercado, passa a vendê-los (os defeitos), em vez do produto original.

O comentário sobre a estética do filme é apenas um acessório a isso, mas traz certo riso, um riso um tanto sardônico, um tanto insano, é verdade, mas ainda assim, uma graça: as rosas vermelhas que perseguem a câmera em quase todos os ambientes, os efeitos de montagem lançados nas fantasias do personagem de Kevin Spacey.

Assim, é em um percurso igual ao do argumento da letargia que se coloca a discussão do filme. É no mesmo sentido do cinismo da atualidade. Não há catarse resolutiva no filme, há letargia, conformismo. No final, o personagem agradece pela própria cultura americana que o matou. Nesse sentido, American Beauty serve apenas a um mesmo propósito, o mesmo de que já falamos: para que a sociedade que o produziu possa dormir em paz à noite, fingindo que se analisou. Não o fez, apenas deu-se mais um prêmio, cortesia entre iguais, como a honra entre criminosos.

Alexandre Werneck