Amor
à Toda Prova, de P. J. Hogan
Unconditional
Love, EUA, 2002
São misteriosos
os meandros da distribuição de cinema no mundo todo. Amor
à Toda Prova, filme de 2002 de P. J. Hogan (diretor de dois
filmes de sucesso, O Casamento de Muriel e O Casamento do Meu
Melhor Amigo), até hoje não foi lançado comercialmente,
por exemplo, nos EUA (isso segundo dados colhidos na Internet, claro).
Geralmente este é o fim reservado para filmes com os quais o estúdio
produtor (aqui, no caso, a New Line) não sabe bem como lidar, ou
que são resultados de longos processos de realização
e problemas. Não nos interessa penetrar tanto neste histórico,
mas é um fato a ser mencionado, por um simples motivo: o filme
é muito bom (e, a julgar pela sessão onde o assisti, de
enorme contato com o público, que aplaudiu ao final do filme).
Feito o parágrafo introdutório jornalístico de plantão,
vamos tentar explicar um pouco este "muito bom", que afinal
é para que eu estou aqui...
Por um acaso da tradução
e do acaso de datas de lançamento, Amor à Toda Prova
é lançado no Brasil pouco mais de um mês depois de
O Amor Custa Caro, mais recente filme dos irmãos Coen. A
coincidência, além da confusão de parte do público
sobre qual filme é qual, nos interessa bastante na argumentação
a ser feita aqui. A compreensão dos Coen do fenômeno de comédia
é uma necessariamente cínica, e a se realizar de cima para
baixo na maioria dos casos. Eles buscam dialogar com um público
eminentemente cinéfilo através de uma relação
com os gêneros do cinema, e com a própria sociedade americana
(tema maior de seu cinema), pela chave da sátira, e neste ponto
os cineastas se colocam quase que de fora do objeto a ser observado. Nos
seus melhores filmes, esta combinação conseguia enorme sucesso
tanto pela novidade de seu olhar entre o ácido e o afetuoso quanto
pela quase paradoxal mistura de hiperrealismo (em suas histórias
muitas vezes os ambientes e/ou personagens lidam diretamente com os perdedores
em suas rotinas) e profunda abstração. Já P. J. Hogan
é um caso diverso: em sua constante brincadeira com o mundo das
relações amorosas e familiares (palco clássico da
comédia de costumes), Hogan busca um olhar muito mais ao nível
dos personagens, filmando suas estranhezas sem patologizá-las,
interessado na humanidade por trás das idiossincracias humanas.
O que há de
mais interessante na comparação entre estes dois filmes
é que, de uma forma ou outra, lidam com um tipo de comédia
mais específico, a "screwball comedy", a "zany comedy",
aquela onde uma trama altamente improvável vai sendo construída,
e onde o humor beira sempre o absurdo, onde personagens e diálogos
rápidos fazem a trama avançar em ritmo intenso. Aí
é que se estabelece a diferença: enquanto o filme dos irmãos
Coen, mais uma vez, propõe quase uma investigação
sobre este gênero, retomando muitos de seus temas e personagens
(onde George Clooney, por exemplo, tenta uma incorporação
de Clark Gable). Neste exercício, toda espontaneidade (sempre uma
qualidade na comédia) vai embora em favor de uma engessada estrutura,
e um humor supostamente esperto demais, onde se ri, mais uma vez, de cima
para baixo. Cada diálogo ou ação parece escrito para
cutucar o espectador dizendo "como somos espertos, hein?" (mais
observações já foram feitas sobre o filme na crítica
específica, por isso paramos aqui). Já o filme de P. J.
Hogan vai na chave exatamente oposta: não interessa para ele retomar
uma tradição e se filiar claramente a ela, homenageando-a
ou reciclando-a. Para ele, não importa se o espectador está
familiarizado com este gênero para poder achar graça do filme.
O que ele propõe é um movimento muito mais, por assim dizer,
honesto: ele quer sinceramente fazer um filme dentro do gênero,
apenas mais um filme. Não estudá-lo e sim exercitá-lo.
E nisto é impressionantemente bem sucedido.
No começo,
a impressão de um filme que já vimos excessivamente nos
últimos anos, o da mulher que redescobre o prazer pela vida a partir
da relação com um homem fora do seu casamento (vamos lembrar
a retomada do gênero com Shirley Valentine, e citar, por
exemplo, Pão e Tulipas). Ao olhar atento do espectador,
porém, já se desenham neste início algumas características
próprias bastante específicas que sinalizam que o filme
não cairá numa vala comum, principalmente o trabalho visual
cuidadosíssimo de uma fotografia em scope que, em momentos, lembra
a sutileza de utilização da composição de
quadro de um A Primeira Noite de um Homem (a abertura aqui, com
a cena da neblina, é belíssima, e lembra de alguma forma
a piscina deste filme citado). Além disso, pequenos detalhes nos
chamam a atenção, até mesmo pela personagem principal
se chamar Grace, e ser interpretada por Kathy Bates numa chave onde ela
é, de fato, o arquétipo da redenção a ser
buscada. Mas a impressão é mesmo a de que conhecemos aquela
história da mulher negligenciada pelo marido (embora Dan Aykroyd
fuja na composição deste do estereótipo do marido
desatento), que terá uma mudança de vida e postura a partir
de um contato com um homem. É um pouco neste tom que o filme segue
ao longo de sua introdução, mas isso começa a ser
quebrado quando o objeto dos sonhos da mulher aparece assassinado. Ela
decide, então, seguir para a Inglaterra, para o funeral do homem
(um famoso cantor romântico), e é literalmente nesta viagem
que o filme começa a mostrar suas garras.
Literalmente porque
a cena do avião é uma, desde já, antológica,
com a mistura de registros atingindo o surrealismo na intervenção
de Julie Andrews, em participação especial, brincando com
sua própria imagem numa das mais inesperadas cenas de "turbulência
no ar" da história do cinema (cena que será retomada
mais na frente, por incrível, que pareça, com idêntico
histrionismo, surpresa e funcionalidade). Daí para a frente é
que o filme embarca em outra direção, abandonando a questão
romântica como o foco de satisfação e encontro do
seu lugar no mundo pela mulher, e nisso Hogan vai mostrar o verdadeiro
interesse do filme. A partir do encontro de Grace com o personagem de
Rupert Everett, o filme prosseguirá no trajeto de redenção
pessoal que a personagem dela segue, mas sai da seara efetivamente machista
na qual é sempre na figura de um homem encantador que a mulher
encontra seu centro, redescobre a vida. Grace vai encontrar sua alegria
não num interesse romântico, e sim num homossexual e num
morto. A partir do estabelecimento da relação entre os personagens
de Bates e Everett, o filme quase atinge a perfeição na
seara da comédia, porque passa a misturar um timing cômico
excepcional (a cena com as irmãs do falecido numa casa de chá
é brilhante), que é tanto dos atores quanto da direção
e do roteiro, com uma construção de trama e personagens
que nunca cai no lugar comum, criando uma rede de relações
fluida e sempre renovada. O filme muda de centro e registro muitas vezes
daí até o final, mas todas as mudanças acabam sendo
bem sucedidas porque o espectador está conquistado, e Hogan tem
enorme domínio da comicidade.
Hogan vai brincar
com quase todas as possibilidades que sua trama e elenco lhe dão,
indo da referência direta (seja à persona de Kathy Bates
como uma psicótica, papel que a consagrou em Louca Obsessão,
seja a cenas ou filmes como Butch Cassidy e Não Olhe
Agora) ao humor de diálogos finos, chegando a uma rica brincadeira
de gêneros que chega ao ápice com a solução
de uma trama "fake" hilariante puxada dos clichês de filmes
de "serial killers", que culmina num número musical.
Esta mudança de registro e fontes cômicas deixa o filme fresco
para o espectador o tempo todo. E, acima de tudo, funciona porque Hogan
é um cineasta sem medo de se entregar ao seu humor. Quando resolve
lidar com o politicamente incorreto, vai até o fim (o personagem
da anã é fenomenal, em especial a piada inevitável
com a relação de anões com cenas de sonhos), mas
o faz da mesma forma na entrega ao que há de mais emocional (ou,
segundo alguns, brega – o filme termina com um número musical com
Barry Manilow!). Ele acredita no material que filma, sempre, e sua crença
passa para o espectador, sem dúvida. O seu olhar afetuoso e "camp"
ao jogo de gêneros pode ter uma relação com sua nacionalidade
australiana, que o diferencia de um olhar americano sobre uma trama em
si muito americana. Ele olha de fora, o que tanto implica uma distância
como uma admiração verdadeira pelo ambiente que este cinema
significa. Vindo de fora, ele parece muito mais em casa do que os citados
Coen.
Mas, o principal a
se retirar do filme de Hogan é que todo este domínio de
estilo de um gênero está a serviço, de fato, de um
verdadeiro humanismo, ou seja, de uma crença profunda na s relações
humanas e na complexidade delas. Os personagens nunca são apenas
clichês, e suas relações não são simples
e num tom só. O marido, interpretado por Aykroyd, tanto não
é um calhorda no início como não será um redimido
no final (esperaríamos de um diretor menor um "eu te amo"
que ele não dirá), e todas as relações amorosas
são possíveis em suas falibilidades (é belíssima
a cena do encontro do anã com o marido, numa delegacia de polícia,
justamente por não tratar o assunto com sensacionalismo e sim com
normalidade). Mas, acima de tudo, é absurdamente claro na sua defesa
das diferenças e da beleza destas (personificada na trama na rendição
das matronas inglesas, afirmando "We love gay youth!"). Hogan
faz um filme que não tem vergonha de ser realmente popular, e sabe
que para isso (ao contrário do que cantam alguns por aí)
não precisa abandonar nem a inteligência nem a grandeza de
idéias. Trata-se de um belo filme que reforça a figura dele
como um dos grandes da comédia no cinema atual, como já
indicavam seus filmes anteriores. Aguardamos ansiosos por Peter Pan,
que vem aí...
Eduardo Valente
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