O Americano Tranquilo,
de Philip Noyce

The quiet american, EUA/Alemanha/Austrália, 2002


Tratando muitas vezes de questões morais no contexto de situações políticas, a obra de Graham Greene vem fascinando público e diretores de cinema há muito tempo. Diversas adaptações dos mesmos romances, em diferentes épocas, atestam uma constante atualidade de seus textos e de sua temática, onde transpira fortemente a marca de sua experiência individual. No caso de O Americano Tranquilo, publicado em 1955 e que já havia sido adaptado à tela por Joseph L. Mankiewicz três anos depois, a pertinência de seu tema num mundo às portas de mais uma guerra intervencionista imposta pelo governo norte-americano justifica mais que plenamente a urgência de uma releitura.

Livro e filmes têm como personagem central Fowler, veterano e decadente jornalista inglês, lotado como correspondente no Vietnã, ainda dominado pela França. Fowler vive com uma amante, a jovem vietnamita Phuong, conformada pelo fato dele, apesar de amá-la profundamente, não poder assumir a relação de modo definitivo pois sua esposa, que permanece na Inglaterra, recusa-se a conceder o divórcio devido à sua formação católica (temos aí o reflexo da vida do próprio autor, que vivenciou situação idêntica, tendo colecionado amantes ao longo de suas incessantes viagens, inclusive para o próprio Vietnã, como jornalista e escritor). Dois acontecimentos determinam uma reviravolta marcante na vida de Fowler, a iminência de um regresso a seu país e a chegada a Saigon de Pyle, o americano do título. Inicialmente apresentado como agente de uma missão diplomática e um aparente poço de boas intenções, Pyle apaixona-se por Phuong, propondo-se a substituir a relação clandestina entre ela e Fowler por um casamento dentro dos padrões que ele considera "decentes". Mas à medida que Fowler perde sua amada para Pyle e que este vai se revelando homem de ligação entre o governo americano e o grupo armado do general Thé, apresentado como uma "terceira via" para um Vietnã dividido entre a dominação francesa e os rebeldes comunistas, e responsável por uma onda de violências e atentados, o jornalista decide participar de uma armadilha que levará o americano às mãos de um grupo de rebeldes.

Escrito em uma época na qual a situação de guerra fria levou a política neo-colonialista americana a espalhar seus braços ao redor do mundo, o romance de Greene descreve e antecipa toda uma situação que acabaria por desembocar na longa guerra do Vietnã, com uma imagem nada simpática aos americanos. E esta imagem e abordagem franca permanece no filme de Phillip Noyce, ao contrário da versão de Mankiewicz, que acabou por amenizá-la. E se Greene pagou caro por sua franqueza, passando a ser considerado simpatizante do comunismo e persona non grata nos EUA, quase que o filme acaba também por cumprir um destino igualmente adverso. Concluído em 2001 e com a estréia marcada para o final deste mesmo ano, os atentados de 11 de setembro acabaram por levar o filme por um ano à geladeira e sua produtora, a Miramax, nascida como independente, mas hoje a mais fiel reprodutora (a seu modo) da política de estúdios todo-poderosos que dominou o cinema americano na primeira metade do século XX, cogitou seriamente em jamais lançá-lo.

Mas nem só de coragem e fidelidade vive um filme. E levando-se em conta a nova versão de O Americano Tranquilo como narrativa cinematográfica, alguns problemas tornam-se evidentes, e estes parecem derivar, principalmente, do histórico de Philip Noyce como diretor de filmes de ação como Terror a Bordo ou Perigo Real e Imediato. Este imprime à narrativa um ritmo um tanto quanto acelerado e, muitas vezes, as coisas parecem acontecer rápido demais, com prejuízo de uma verossimilhança no perfil psicológico dos personagens; a atração de Pyle por Phoung, por exemplo, surge como quase um passe de mágica. E com isso o personagem Fowler, a alma da história, não tem suas emoções e motivações aprofundadas, sofrendo uma sensível alteração de seu perfil, que, no original, se não chega a ser totalmente passivo, é o de um homem dominado por forte desecanto e com um temperamento de quem se deixa conduzir pela maré, daí a força de sua atitude final em entregar Pyle, para com quem desenvolvera certos laços de amizade. O Fowler de Noyce e Michael Caine (eficiente, mas não brilhante) assume um perfil mais confrontador que o concebido por Greene, certamente decorrente das intenções do diretor em aproximá-lo de um personagem de ação, o que leva a criar uma desnecessária sequência onde Fowler afronta o general Thé durante uma entrevista. Também gratuita é a encenação da morte de Pyle, antecedida por perseguição e luta, como que advinda de uma necessidade de mostrar ao espectador algo mais físico.

Curiosamente, a versão de Mankiewicz, mesmo alterando drasticamente o final do romance para fugir da crítica aos americanos (no caso Fowler teria sido manipulado pelos comunistas para entregar um Pyle apresentado como vítima, perdendo Phuong, ainda por cima) e com uma caricata caracterização da jovem vietnamita, interpretada por uma atriz ocidental grotescamente maquiada, mostra-se mais eficiente como cinema, apesar de não ser um dos melhores trabalhos de um diretor que muitas vezes atingiu um patamar de excelência (Quém é o Infiel?, A Malvada, Jogo Mortal). Só que, paradoxalmente, as alterações acabam por reforçar uma ambiguidade dos personagens, principalmente Fowler, no caso a cargo de Michael Redgrave, acentuada pela fotografia em preto-e-branco. É a diferença que faz um realizador de especial talento, mesmo que em momentos menos felizes.

Mas nosso assunto é a versão de 2002, e esta consegue atingir o incomum estágio de um filme que, apesar de certas deficiências de concepção e ritmo e de uma dramaturgia um tanto capenga (surpreendente para um roteiro que conta tem a co-autoria de Christopher Hampton, "macaco-véio" de eficientes adaptações literárias como Ligações Perigosas), atinge uma relevância histórica no momento em que é feito, que acaba por torná-lo um trabalho no mínimo pertinente.

Gilberto Silva Jr.