Amarelo Manga, de Claudio Assis

Brasil, 2002

Um plano de Amarelo Manga induz a uma sensação bastante ambígua e ao mesmo tempo rica sobre o filme de Cláudio Assis. É o do senhor nordestino, tipicamente um habitante da Recife suburbana que o filme optou por descortinar, que, sentado, lê um livro de Nietzsche. A mensagem mais imediata que a imagem sugere é a de um fetiche da ousadia que soa como anedota: o filme funcionaria como uma tentativa de adoçamento popular do pensamento nietzschiano. É uma tentativa de fazer de Friedrich um flâneur não só das ruas de Turim, mas das do Recife, é uma mistura de Zaratustra e terreiro, de fúria recifense e filosofia a golpes de martelo.

Mas humano, demasiado humano, Amarelo Manga vai além do mero jogo metonímico. Não é para mostrar que Nietzsche é universal nem que para dar conta da filosofia da celebração da vida. É mesmo mais um filme sobre a luta severa entre o eterno retorno e o desejo. E nesse sentido, é a golpes de martelo de linguagem que Assis trabalha. Isso porque, no fundo, o que há de mais forte em Amarelo manga é sua carnalidade. Com o perdão da expressão, este não é um filme sobre sexo, é um filme sobre foda. Não é um filme sobre vagina, é um filme sobre buceta.

Isso porque cada plano, cada operação de visualidade do filme exercita o uso do chulo, mas na verdade do carnal, do sang¨´ineo, do animal, como uma demonstração de força da própria expressão como combate. Os personagens do filme estão inseridos em um círculo da repetição infinita do estatuto do desejo. E é no desejo que se revelam como potência e ato. A aparição do próprio Assis como "gênio maligno" diante da personagem de Dira Paes, a evangélica – personagem associado à interdição do desejo e à transferência do lugar de seu exercício do corpo para o êxtase iniciático –, é uma demonstração de uma determinação que se impõe a cada momento no filme. Os personagens são determinados (por uma força maior) e cheios de determinação (para conseguirem o que querem). A constituição de um individualismo combativo marcado justamente pelo desejo, de um desejo de carne, que escorre sangue, é o guia e ao mesmo tempo o sintoma mais forte dessa determinação.

Pois é na construção desses personagens determinados que Amarelo Manga se mostra forte como cinema. Não bastasse ser um filme politicamente importante – por depor contra um cinema da qualidade e por expor as chagas de um povo sem piedade e dando a eles a grandeza da culpa –, seus personagens são um exercício de vigor ímpar. Todos são apresentados sempre com os atores superinterpretando, sempre um tom acima, e todos ele se relacionam com o mundo através de uma forma particular de relação com a carne, às vezes de gente, às vezes de boi. Mas sempre no fio da navalha, entre a vida e a morte.

A garçonete de boteco vivida (cheia de vida) por Leona Cavalli se movimenta como uma celebração do corpo de seu valor como sina. Assim como a evangélica, seu corpo também é interditado para a posse, mas não para a exposição. O empregado de matadouro encarnado por Chico Diaz sangra bovinos e eleva sua mulher a um pedestal de limpeza, ao mesmo tempo que tem com a amante uma relação sempre intermediada pela violência física; o estranho vigarista interpretado por Jonas Bloch gosta de balear cadáveres; o atendente do hotel de Matheus Nachtergaelle, além de homossexual – o que já pressupõe uma relação com o corpo que o coloca em uma posição de destaque em um sistema centrado nele –, não hesitará em proclamar a infelicidade do outro para celebrar a sua, felicidade que está na carne que o funcionário do matadouro representa.

Cada um desses personagens colabora a sua maneira, assim como os outros, para a sentença surpreendente do filme: a filosofia trágica de Cláudio Assis é trágica mesmo. Seu eterno retorno do mesmo não é convite à celebração da vida, é afirmação de sina. O homem é mesmo este animal degenerado que vaga sobre a terra e com uma marca de sangue que lhe interdita para a felicidade, justamente o desejo. O homem é mal, é o modelo que serviu de inspiração para o projetista que inventou o capeta. Como dissemos acima, não se pode olhar para o sofredor com piedade, ele tem direito a ser culpado, a fazer o mal tanto quando os observadores cínicos da classe alta.

Por isso mesmo, não é na excitação do desejo que o filme desfila sua moral. É na conversão dele em instância grotesca. Diante do homem e da mulher nus, babando de desejo, o filme não vê humanização possível. Ou melhor, vê que o humano não tem pureza, não tem limpeza possível. Não há linguagem, há apenas grunhido, não há amor, apenas sexo, não há vida, apenas ciclo.

Igualmente, a visualidade do filme, que aparentemente é construída pela cor, mas é na verdade intensificada pelo movimento – a câmera está sempre em busca de seus objetos ou os está perseguindo, como um diabrete matreiro –, manifesta um corte que só faz reforçar a temporalidade circular da história. Circular não apenas pela repetição da fala da garçonete, conexão mais explícita com o eterno retorno, mas, sobretudo, pela demonstração de que todas as mudanças que marcam a história, e são muitas, nada mudam no estatuto desgraçado do homem.

Alexandre Werneck