Adaptação,
de Spike Jonze

Adaptation, EUA, 2002


Reza a lenda do showbiz que Adaptação é ficção baseada em evento real. Nasceu da suposta impossibilidade do roteirista Charlie Kaufman, o cérebro por trás da câmera de Spike Jonze em Quero Ser John Malkovich, em escrever um roteiro baseado em um livro-reportagem. Tal história nunca nem chegou ao papel. Essa limitação tornou-se tema para Kaufman e dela trata nosso filme em questão. Trata-se de um filme sobre um filme não feito. Nos primeiros momentos, Kaufman, interpretado por Nicolas Cage, aparece no set, olhem só, de Quero Ser John Malkovich, aquela comédia muito elogiada e pouco compreendida, na qual ninguém aceitava ser a si próprio e sonhava em ser qualquer outro. A questão da negação e da reconstrução da identidade está de volta. As imagens da filmagem não constituem gracinha narrativa, há uma razão para essa opção. Kaufman não apita nada naquele ambiente, é um roteirista que só assiste "sua obra". Fica em um canto, passivo, sem interferir em nada. Em um intervalo, John Malkovich, ele próprio, o ator, não o personagem, dá um pito na equipe. Spike Jonze, o diretor, nem aparece. Impossível não questionar: afinal, quem é o autor do filme? Tal pergunta será colocada ao longo de Adaptação. Identidade, afinal, é autoria.

O título não se refere apenas à atividade com a qual se debate o protagonista, Charlie Kaufman (Nicolas Cage), roteirista incapaz de adaptar um livro sobre flores, O Ladrão de Orquídeas, de Susan Orlean, por não encontrar a verdade de sua obra na obra de outro autor. Adaptação também diz respeito à sua atitude profissional, cujas ambições artísticas não rimam com a impessoalidade de Hollywood. Ele quer fugir dos clichês e subverter os mandamentos. Deseja a originalidade e a autoralidade em um usina de fórmulas industriais. Pretende levar questões em vez de respondê-las sem convicção.

Sua crise não é, porém, somente criativa. É filosófica. Kaufman gostaria de adaptar o mundo a ele para não se adaptar ao mundo. No entanto, não se aceita. Acha-se fracassado, gordo, careca, inseguro, desprovido de charme, desajeitado com as mulheres e sem ânimo para a vida. Ele sonha em esquiar, aprender russo e tocar oboé, mas tem preguiça. É vítima do estilhaçamento do homem moderno, sempre arriscado a tornar-se impotente diante da multiplicidade de opções, da possibilidade de ter muitas identidades e da dificuldade de se encontrar em tantos fragmentos.

Estamos em mais uma fábula sombria sobre a busca das verdades perdidas. Adaptação não é somente um filme sobre um tipo em crise consigo mesmo, com seu meio, com a arte e com a vida, mas também um filme em crise com o cinema e com suas próprias opções. Se o personagem não encontra a perseguida transcendência na obra dele e na da autora, o filme também evita dar respostas e ensinamentos objetivos simplesmente por não tê-los. Durante sua jornada artística e existencial, Kaufman descobre que o sentido de tudo, seja da vida ou da arte, só poderá ser dado pela subjetividade. A transcendência não existe em nada, apenas em quem a inventa. Só é possível criar no nível pessoal. Só assim as obras ganham autonomia.

Essa descoberta é possibilitada pelo contato de Charlie com seu irmão gêmeo, Donald (Cage outra vez), também roteirista, mas homem sem crise e profissional sem pretensão autoral. Donald é pragmático, não se interessa pelo sentido de nada e não se importa de usar idéias alheias. Sua meta é chegar a um resultado x ou y, dentro dos métodos já sedimentados pelo cinema, pois acredita na atividade funcional, falsamente objetiva, utopicamente científica, sem as frescuras artísticas do irmão. Nada de questionar. Limita-se a reproduzir. Ele escreve um roteiro sobre um serial killer com dupla personalidade. Não por acaso. Ele é o lado B de Charlie. Esse acredita que, para se chegar à uma verdade, ela não deve existir a priori, como pregam os gurus de roteiro, mas surgir no processo. Só o mergulho no caos pode dar respostas ao próprio caos. Não há respostas se não houver perguntas. Sendo assim, trabalhar sobre material alheio, é um desafio. Só pode ser possível, nesse caso, se ele reinventar tudo.

Kaufman não vê nenhuma verdade ou revelação ao ler o livro de Susan Orlean (Meryl Strepp), cuja reportagem sobre orquídeas é exibida paralelamente a seu drama. A escritora vê seu personagem real, o orquidófilo John Laroche (Chris Cooper), como um ser movido à paixão. O fascínio e a devoção pelas orquídeas, assim como a visão sacra com que fala de uma espécie rara (uma tal de "orquídea fantasma"), seria a razão de sua existência. As flores lhe dariam um sentido para tudo. Balela. O sujeito é um oportunista. Quer apenas se dar bem e, para isso, troca as orquídeas por pornografia. É pragmático, não romântico. Susan se decepciona com essa descoberta. Dá-se conta de que transcendência, mais uma vez, é algo a ser inventado. As orquídeas, lembremos, são fantasmas.

Essa falta de certezas de Susan é razão pela qual Kaufman não consegue adaptar seu livro. Ou ele decreta que nada têm sentido, conformando-se com o absurdo, ou deve buscar um para ele. Em resenha no Jornal do Brasil, Rodrigo Fonseca compara Adaptação a Beckett, mas ignora algo fundamental. Em Beckett, nenhum sentido é possível, nem o subjetivo. Em Adaptação, existe essa possibilidade. Esse sentido não surgirá como o protagonista quer, de antemão, mas será fruto suas próprias experiências. Sentidos são produzidos por olhares sobre processos. Cultor da autoralidade, Kaufman não é autor total. Ele também é uma obra construída pela forma com a qual interpreta e toca sua vida. Adaptação é então, portanto, a busca por um "eu". Acompanha a construção da identidade de um sujeito/vítima da pós-modernidade. Parte dessa identidade está no que o personagem é, parte está em como quer ser, um outro tanto em como o enxergam.

Adaptar não é só fazer concessões e respeitar limites impostos. Também é encontrar-se em algo já dado de antemão a ponto de alterar essa circunstância. No terreno da criação, Kaufman não vira a mesa, em uma idealizada subversão total, mas mantém a alma. Concede sem perder convicções. A autoparódica e tão metralhada seqüência final, na qual o filme aparentemente reproduz os clichês das aventuras hollywoodianas e dá a impressão de o personagem estar traindo todos seus princípios, reproduz essa autoralidade sem rupturas. Pois a lógica interna de tal passagem rompe com o evangelho do roteiro de sucesso. O desfecho é dado pelo acaso e não pelo herói, a narração em primeira pessoa rompe com a busca da objetividade da narrativa onisciente e o aprendizado do protagonista se dá com seu oponente, não com uma transformação autônoma.

É uma tentação e até possível ver Adaptação como autópsia do cinema independente. Sem a pretensão de emitir lições ou mensagens generalizadas, o filme expõe a crise de uma produção que, embora busque renovar as convenções e enterrar os lugares-comuns, cede à metodologia dos grandes estúdios ou, se não o faz, aceita a margem de quem opta pela contramão. Na visão de Kaufman, o personagem, há uma terceira via. Ele mostra que a inserção no mainstream, longe de significar uma rendição total a ele, pode também alterá-lo por dentro. Só um cego não veria que isso sempre aconteceu. É possível ceder sem perder a compostura.

O roteiro de Kaufman sobre Kaufman é, no sentido histórico-cinematográfico, também uma espécie de terceira via. Ao se achar dono da história e das idéias do roteiro, sem levar em conta a interferência dos produtores, do diretor e dos executivos dos estúdios, o protagonista/roteirista apresenta-se como autor. Essa importância do roteirista no sistema de criação distorce a prática do cinema clássico, no qual a figura do produtor tem presença forte, e nega uma dos fundamentais do cinema moderno, no qual o diretor é manda-chuva criativo. Não há informações se, para além da tela, Kaufman é um autor, não um técnico da dramaturgia, como é de costume.

O script seria alma, cérebro e esqueleto do filme, de modo a se ordenar o caos. Caberia à filmagem apenas vestir o filme com imagens. Spike Jonze seria, seguindo esse raciocínio, um pau mandado. Um diretor à serviço do roteirista. Nos dois filmes da dupla, de fato, o roteiro supera a mise en scène. Também esboça a estrutura a ser seguida na montagem. Estaríamos diante de um cinema de conceitos, onde a linguagem existe com antecedência, o processo é determinado pelos objetivos e a estética serve à comprovação das idéias. Esse fórmula, porém, está em aberto. Não se constitui como fórmula, nem se estabelece como dogmas. É apenas uma tentativa. Das mais interessantes e conscientes de sua crise. Adaptação é a prova de que adaptar não é atitude osmótica. É atividade cheia conflitos, descobertas e pulsações. Enfim, a vida.

Cléber Eduardo