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Análises de peso, como a de Ismail Xavier no livro Alegorias do subdesenvolvimento, já demonstraram de que forma uma imagem como essa carrega a recusa antiteleológica radical de Bressane e define o tom de pós-utopia do cinema marginal. O objetivo aqui não é simplesmente fazer um desnecessário eco a tais análises. Partindo do que Noel Burch define como "estruturas de agressão" (in Práxis do cinema, São Paulo: Perspectiva, 1969), pretendo esboçar um raciocínio em cima das formas de violência (ou a violência das formas) que aparecem em O Anjo Nasceu, aquele que até hoje permanece como o melhor filme de Bressane. No livro de Burch há a constatação de que uma das obras-primas de Akira Kurosawa, Trono Manchado de Sangue, "é estruturada a partir de uma alternância contínua, brutal, entre cenas exacerbadamente violentas e outras quase insuportavelmente líricas, tensas e contidamente repousantes" (p. 156). Não é tão longe do filme de Bressane, onde o lirismo ocupa um lugar confuso (o detalhe do sangue escorrendo na pedra, por exemplo, plano ultrafechado que se contrapõe em escala ao grande plano geral final da estrada, mas que funciona como seu duplo em significado – o escoamento do sangue/tempo acompanhado de mal-estar e degeneração) e onde sua alternância com cenas de crueza absurda desperta um estranho jogo de tensão e distensão. Toda a seqüência na casa invadida pela dupla quixotesca (mais uma vez, esmiuçar o modo como essa dupla reproduz o antigo par cavaleiro/fiel-escudeiro seria chover no molhado devido à análise de Ismail Xavier) se monta através de atos "puramente violentos", filmados com absoluta frieza e imparcialidade – câmera não-participativa diametralmente oposta à utilização da câmera na mão por parte de alguns cinema-novistas (lembrar das circunvoluções "tateantes" executadas por Dib Lutfi para Glauber) –, e momentos em que os dois bandidos exercitam sua pachorra à mais aguda despretensão, seja ao se deitar numa rede e jogar conversa fora, seja ao assistir à TV (destaque para a cena da chegada do homem à lua, tão atual no filme, de 1969, quanto genial na sua incursão num discurso fílmico que, sem precisar de comentários adicionais, faz das palavras de entusiasmo e progressismo do presidente dos EUA uma piada já pronta – e eis uma forma de agressão não menos autêntica). Perfeitamente coerente é o fato do filme possuir cenas de humor negro e ainda mostrar seus protagonistas indo ao cinema para ver, possivelmente (não vemos o filme, mas somente Urtiga a se esbaldar de tanto rir), um típico representante da comédia ligeira dos tempos áureos do cinema-entretenimento (e da imagem-movimento, por assim dizer – é bastante claro como o filme caminha desse estágio inaugural, condensado no prólogo que resume toda sua ação, para a posterior imagem-tempo, sendo o plano final da estrada a expressão direta de um dos motores de arranque dos cinemas modernos mundo afora, ou seja, a imagem estática que se traduz como concreção do tempo, ao invés de emoldurar uma ação embalada pelo tempo abstrato da montagem). Júlio Bressane conhece o princípio de comicidade do espaço, "proibindo" a montagem, como diria Bazin, quando necessita relacionar os personagens não só entre si, mas também com o meio e com os objetos à sua volta, algo cuja eficácia cômica se concentra numa imagem que englobe tudo e que não sofra o corte entre uma e outra ação simultânea. A cena de urtiga se escangalhando de rir, por exemplo, não surtiria efeito caso ele estivesse dissociado de Santa Maria emburrado, num misto de tédio e sofrimento (a dor do tiro que levou na perna enquanto fugiam no início do filme), por mais que essa conjunção de estados psicológicos implique um embate entre riso (pólo positivo inerente ao escudeiro pragmático e cuidadoso) e angústia (pólo negativo próprio do cavaleiro sonhador – no caso, a crença no tal anjo – e fracassado/impotente). Sobre a comédia burlesca, Burch ressalta sua capacidade de unir agressão e aparência de estrutura. Nas melhores cenas de Buster Keaton, segundo Burch, contabilizamos um conteúdo agressivo e uma beleza de estrutura que causam um riso não desacompanhado de perplexidade. Angústia e riso caminhando lado a lado: o humor mórbido e escatológico de alguns desenhos animados não deixa de ser bom exemplo. Cartelas de desenhos, por sinal, são usadas por Bressane na introdução de O Anjo Nasceu, das quais sobressai a de um tubarão devorando um peixe menor: violência instintiva que impedirá um discurso sociologizante quando das cenas violentas mais adiante no filme. A violência em O Anjo Nasceu é difusa, possui tentáculos na marginalidade mas não se circunscreve unicamente a ela. Seu germe, no fundo, está na imagem do tubarão devorador. Santa Maria e Urtiga não praticam atos insidiosos em bando, não praticam a mesma violência das gangues. Tampouco a dos bandidos justiceiros. Se Glauber, ao constatar uma realidade que julga irracional, propõe uma racionalização da violência que ele expressa ora na legitimação do banditismo social, ou de qualquer ato violento que venha de "baixo", ora no espírito de luta de uma classe média consciente e disposta a um sacrifício pelo bem coletivo (o intelectual de Terra em Transe com uma arma na mão), Bressane confia ao homo violens uma parte integrante do homem tão ou mais preponderante quanto o homo laborans vangloriado pelos marxistas. Está certo que o mais recente trabalho de Júlio Bressane se chama Filme de Amor, mas sua grande obra-prima é um filme de agressão. Luiz Carlos Oliveira Jr. |
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