O Anjo Nasceu (roteiro original)

 

Sequência 1

1 – Uma favela do Rio. No interior de um barraco um marginal Urtiga anda de um lado para o outro. Mais ao fundo, deitado em uma cama estreita, com uma cortina que a separa, está Santamaria, marginal místico que fala coisas sem nexo como se estivesse sonhando.

Urtiga:
É que eu sou o Urtiga, em mim ninguém toca porque senão empola...Que é isso ,sem essa, é pôr causa de homem ou de tóxico? Corta essa Santamaria.

Santamaria:
Não aporrinha Urtiga...fica na sua que eu fico na minha.

Urtiga:
(jogando com as palavras)
Aporrinha...Fica na sua que eu fico na minha...é um barato. O negócio é o seguinte, nós temos que ir lá. É a hora, Santa.

Santamaria:
Ainda não. A barra tá pesada lá embaixo. Os homerns estão fechando tudo.

Urtiga:
Mas eles querem subir. A gente vai se entregar igual coelho. Não.

Santamaria virando e sentando na cama.

Santamaria:
É. Igual coelho, não.

2 – Beco apertado de saída. Teleobjetiva em plano próximo, Urtiga e Santamaria correm por entre tiros que salpicam na parede. Santamaria é ferido na perna. Cai....Urtiga o carrega. Fogem.

Seqüência 2

3 – Praia deserta. Uma cabana de pescadores. Urtiga cuida da perna ferida de Santamaria.

Santamaria:
Que fria, eu não disse.

Urtiga:
Mas se a gente fica, morre.

Santamaria:
Vou ter que me amarrar aqui um mês. Que merda.

Urtiga:
Eu quebro o galho, deixa.

Santamaria:
Não. Daqui a pouco eu me viro também.

4 – Plano de chaleira fervendo.

5 – Urtiga na janela fumando e olhando o mar. Santamaria dorme.

Seqüência 3

6 – Estrada na Barra da Tijuca deserta, Urtiga andando sozinho, pára perto de uma enorme casa, olha pelo chão, entra, atravessa o jardim.

7 – Interior da casa: Urtiga pula a janela da cozinha. Vai até a sala. Outra sala. Quarto. Varanda. Está vazia.

8 – Urtiga e Santamaria na sala sentados, comem umas bananas e vêem televisão. Santamaria tem a perna enfaixada e com mancha de sangue. Câmera se afasta lentamente da sala, desaparecendo o som da televisão.

9 – Quarto. Santamaria de pé, nu. Urtiga sentado na cama de costas sobre parte do corpo de Santamaria. Um está diante do outro, Santamaria passa a mão no ombro de Urtiga. Escurece a imagem.

10 – Jardim da casa, de manhã. Um carro entra, é a dona da casa com dois empregados (um homem e uma mulher). O carro pára, eles saltam, Urtiga os vê e pára debaixo da escada (dentro de casa).

Os empregados tiram as coisas de dentro do carro (comida etc...).Entram. Urtiga vem por trás e dá dois rápidos golpes de faca no empregado, este cai morto. As mulheres gritam, aparece Santamaria e dá um murro na cara da patroa, esta cai e a empregada cala.

Santamaria:
Não grita porra, nunca viu ninguém morrer?

A empregada nervosa bate com a mão em um jarro e derruba-o. Urtiga dá-lhe um bofetão.

Urtiga:
Quebra o jarro, corta. Não gosto de ouvir essse barulho.

Toda esta cena é rápida e num clima de violência muito histérico.

11 – Urtiga e Santamaria sentados na mesa são servidos e comem juntos com as mulheres. Tranqüilos.

Urtiga:
Taí...bom rango. Boa moça, já vi que serve no meu fogão.

Santamaria:
É isso mesmo, tem que ser assim, tem nada não...Todo mundo junto, mesa cheia, tudo à vontade, todo mundo igual, na mesma (arrrota).
Maus modos, eu sou incorrigível. Cheio de coisa errada. Mas para mim, o que está certo é que está errado e o que está errado é que está certo. Prá mim, eu que estou certo e a senhora...você é que está errada.

12 – Sala, os quatro vêem televisão, é uma novela. Urtiga com os pés sobre a mesa come uma fruta. Santamaria recostado em uma poltrona, tem a perna ferida esticada sobre uma cadeira. As duas mulheres estão sentadas, olham a TV. Tensas como se estivessem cumprindo uma ordem. Ouve-se o diálogo da novela. Toda esta cena é feita com o cadáver do empregado na sala.

Santamaria:
Tremendo otário.

Urtiga:
Esses caras tão por fora...

Santamaria:
Vai buscar água...Você também.

Saem as duas da sala.

Urtiga:
Vamos torrar esse carro que é uma nota.

Santamaria:
Güenta, amanhã a gente se arranca.

13 – Outra sala. Santamaria sentado com uns cadernos na mão, folheando. Urtiga em frente às duas moças, perto e juntas. Santamaria lê os cadernos.

Santamaria:
Aí, quer dizer que a moça tá se entregando aqui nos cadernos, boa. Lembretes para viagem: calcinhas, soutiens, anáguas, lenços e despertador. A distinta é organizada. Letras de música, palavras cruzadas, olha só, pensamentos:
Otimista é aquele que um dia quer morar no céu.
Certo...(de repente Santamaria torna sua fisionomia séria e nervosa). Isso mesmo, no céu, é prá lá que eu vou, essa é a minha...

Urtiga:
De novo...

Santamaria:
Cala a boca, Urtiga...Entra nessa que eu te furo!

Santamaria dá uma pausa, um passo, tranqüilo, vira a folha do caderno e lê uma letra de música. (Que saudades que eu tenho da Bahia, só o final).

Santamaria:
É, tá certo o rapaz...tá certo.

Urtiga:
Que entregação...

Santamaria continua lendo o diário da moça:

Santamaria:
Casamento sem filhos é sino sem badalo, só o casamento transforma uma rosa em repolho, o amor é como a borboleta, só vive algumas horas. Tudo é relativo. A moça se entregou com uma maçã na boca (andando em direção à moça). Que é isso...Seu marido não (faz um gesto com a mão)...

Moça:
Cafajeste.

Santamaria:
É isso mesmo, não funciona...O quê que há, dona? Eu não gosto de mulher que reclama, tá nervosa (sacudindo a moça pelo ombro). Vou te mostrar ouviu. Vem Urtiga. (arrasta a moça pelo braço).

14 – Quarto. A dona de casa em pé meio rasgada. A Cam. Pam. Até a cama. Santamaria está deitado beijando a empregada semi nua. Sua perna sangra, há um clima de histeria. Sanatamaria puxa a dona de casa pelo braço, joga-a na cama, começa a beijá-la e Urtiga está sentado em uma cadeira suando e imóvel.

Seqüência 4

15 – Manhã cedo. Urtiga e Santamaria, na sala, ultimam os preparativos para partirem, estão meio enlouquecidos. As mulheres sujas e assustadas estão perto da parede. Urtiga tira do bolso uma navalha, corre até a empregada e corta-lhe o pescoço, ela sai de pé, rolando, e cai no meio da sala. A dona de casa em um canto geme a gritos contidos, Santamaria vai até ela e golpeia-lhe pelas costas com uma navalha também. Ela gira o corpo caindo ao lado da empregada e começa a puxá-la pelo braço at;e morrer. Eles saem. Toda esta sequeência será como um balé moderno em ritmo e gestos.

Seqüência 5

16 – Estrada. Urtiga e Santamria, o primeiro dirige.

Urtiga:
Que pesada.

Santamaria:
Nossa vez tá chegando, eu vi o anjo. Corre porque nossa vez está perto.

Urtiga:
De novo com essa de anjo...

Santamaria:
Eu só te mato se você se encarna nessa minha do anjo. Essa é só minha, cuidado.

17 – Estrada, o carro segue.

Seqüência 6

18 – Praça do Jardim de Alah. O carro parado, capô aberto esfriando, Urtiga fora do carro, lê um jornal. Santamaria dentro do carro, sentado, vê o movimento.

Urtiga:
Ainda não deu nada.

Santamaria:
É. Tá cedo.

Santamaria olhando pela janela do carro, as pessoas sentadas nos bancos, velhos e crianças. Uma moça vestida de homem dança ao som de uma vitrola de pilha.

Santamaria:
Não é possível, o anjo não ia dá uma dessa.

A moça dança. O carro segue, Santamaria olha para a praça, a mesma imagem. Ele dá tiros com a boca.

Seqüência 7

19 – Posto de gasolina. Um carro parado abastacendo, um casal, o homem está fora do carro, a mulher dentro. O posto está vazio, e é fora da idade. Santamaria e Urtiga param no posto.

Urtiga salta do carro, de revolver na mão, atira nos dois homens, vai até o carro e mata a mulher. Revista o carro e os mortos, vai até dentro do posto arromba a caixa tira o dinheiro e volta. Neste momento sai uma bicha do posto, enrolado em lençol, gritando. Santamaria corre mancando até ele, golpeia-lhe por detrás com um pau, este cai e é arrastado para dentro do carro.

Bicha:
Socorro, socorro...Uai, uai, uai...monstros, socorro, ladrões, assassinos, socorro...uai, socorro.

Seqüência 8

20 – Estrada abandonada. Urtiga e Santamaria prendem a bicha em uma árvore com pregos na mão.

A bicha berra, semi enrolado em um lençol.

Bicha:
Não, pelo amor de Deus, não...Ai, ai...Eu faço o que vocês quiserem, eu vou morrer, não, ai...Pára, pelo amor de Deus.

Santamaria:
Morrer a gente também vai. Mas você vai antes. A gente se encontra lá em cima.

Urtiga:
Olha aqui, ô bicha, o papo é o seguinte: você gritou na hora errada. É assim mesmo, você vai na frente como o Santa disse.

Bicha:
Naaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaão.

Urtiga:
...Agora limpa a nossa barra, porque senão tem outra dose lá em cima e com brasa, cuidado.

Ouve-se o tempo todo, os gritos e súplicas da bicha. O carro sai, a câmera se afasta, vendo-se a bicha crucificada na árvore. Morta.

Seqüência 9

21 – Santamaria e Urtiga sentados em barranco, contam o dinheiro.

Santamaria:
Mais um desse e a gente pode comprar o sítio e descansar.

Urtiga:
Claro, e isto a gente faz no casminho, tem uma porção de estrada.

Santamaria:
Um sítio, viver em paz...É isso que eu quero.

Urtiga:
Eu não, não sei se vou me dar bem na vida de campo. Esse negócio de matar passarinho não é comigo. Sem essa. Nego tá nos manjando agora, depois esquece, você tá é apavorado.

Seqüência 10

22 – Urtiga e Santamaria em poeira de subúrbio. Urtiga ri e se diverte, Santamaria sente forte dor na perna ferida. Chama Urtiga e saem. (Santamaria na rua anda. Perna sangra, cai. Urtiga ri a seu lado).

23 – Estrada. Carro a toda velocidade, Santamaria treme de dor e segura a perna. Olha para fora e vê uma mulher vestida de hoemm encostada em uma árvore, ela olha de rabo de olho para ele. O carro a toda velocidade, Santamaria começa a gritar de dor e sua perna está toda ensanguentada, seu grito não acaba.

24 – Carro passando estrada infinita. Ouve-se a música "Peguei um Ita no norte". O carro sumindo, surge a palavra fim.

FIM