Eu sei existir, leitores

A vantagem do aforismo (que não é nada) é a de nos remeter ao exterior a ação:

É preciso devolver o cinema ao cinema.

A Arte é a arte de viver: para a atividade cinematográfica não basta sobreviver.

É preciso viver. E a vida não basta!

Tiremos o véu enganador de nossa prática cinematográfica: Indústria-arte x Arte-indústria. KEKE x KIKI: cinemão x cineminha e etc...

A criação deverá sempre ser capaz de embelezar, de encantar, e nossa época precisa ser embelezada animada por uma educação que constranja. (só sera duradouro o que se fundar no mérito e na virtude, preceito clássico...).

Decadência é riqueza desordenada, dissolução política (que vem via dissolução moral...), emaranhado...

Como todos os homens, pascoaez e não pascoaez, o que domina um artista é o seu prazer e nunca um "projeto político" (gerador de monstruosidades-napoleões de hospício – com perda de sensibilidade e de qualidade sismográfica, e pois, não mais registrando ou sentindo os abalos sísmicos que dão-se à sua volta. Perigo de termos, gerenciando a produção do cinema brasileiro, um sismógrafo quebrado...

É natural e evidente que um cineasta (alma nômade) oponha-se ao déspota administrador! Não faltam pelegos (outra tarefa heróica: afastar o peleguismo nas entidades), Stalins e Goebbels que tiranizam o cinema-poesia entre nós, contudo, o pensamento do cinema de descoberta, de invenção, de experimentaçao no Brasil, em qualquer época, é sempre o de inclinar-se a não se inclinar. Aí, inclinar é declinar...

Eis que o último namoro, o ultimo piscar d’olhos que tive com o nosso Brasil foi o Brás Cubas.

Brás Cubas, o filme; (digo o filme porque há Brás Cubas, o livro, a pintura e a musica...) e um jogo gromatico na área do cinema-música. E do cinema como música da luz. Dentro do cinema brasileiro soa como Voz de salmista de cântico matutino e encontra tradição e tradução (p. ex. os fragmentos do Major Reis, A Viagem de Fernanco Cony Campos e no plano do escravo que em um corredor vazio acerta os ponteiros do enorme e tardo relógio nacional de Capitu. Também Entr’Ato entr’outros...).

Há, como se sabe já, uma premonição extraordinária no Brás Cubas: o cinema e (sua alma) a montagem. A prosa capitular e arrastada até uma fronteira-limite onde transborda no procedimento cinematografista da montagem, narrativa de cortes dentro da seqüência, ou mesmo, plano seqüência sem cortes (tipo Sob o signo de Capricórnio), cut-back (tipo Intolerância que não é flash-back), capítulos-fades, três pontinhos-véus, leitor lente (curiosidade, tem por vezes o leitor grande angular, por vezes o leitor tele objetiva).

Tem títulos de capítulo que são fotograma-fixo, tem ponto de interrogação que é close-up. Tem cartão de pêsames que é cine-jornal (tipo Cidadão Kane).

Brás Cubas, cujo entrecho é eixado nos temas da saudade e melancolia, caminha já no território mais desenvolvido do pensamento: o da ironia e do humor. É a ironia (um processo de investigação, mais intelectual que o humor, que é mais líquido e mais imprevisto) quem rege a expressão desta voz de além túmulo.

Dizia Paul Valery que a tarefa última e mais difícil de um artista é encontrar sua própria Voz. Brás Cubas – a Voz – que fala Vieira Garret Camilo Feliciano Castilho Souzandrade Stern de Quincey, é o ponto-de-partida de toda uma preocupação e procedimento moderno que rolaram na América Latina nos últimos 100 anos...há uma vereda que partindo do Brás Cubas chega às Galáxias de H. de Campos sem perder o rumo, recriando-se no percurso!

Sua música é música sobre música paródica, ordem e simetria (à Ravel).

Sua pintura é Cubo-Futurista.

Seu texto é...Cinema.

Brás Cubas todo respira e inspira (nosso) cinema.

São estas as folhas de meu cipreste. Hão de cair...

Julio Bressane
(originalmente publicado no Pasquim em 1985)