Destaques
da retrospectiva

Num universo
amplo de mais de 30 filmes exibidos, a obra de Julio Bressane se multiplica
de forma assustadora, tamanha a quantidade de filmes muito pouco (ou quase
nunca) vistos. Dono de um modo de fazer cinema que torna cada filme (ou
video) essencial para a representação, como o o próprio
cineasta coloca, do momento criativo específico vivido por Bressane
à época da criação daquelas imagens, parece
missão impossível a tarefa de destacar alguns títulos,
desmembrá-los do corpo todo do universo de imagens bressanianas.
O que procuramos aqui é dar, aos olhos novos que se colocam diante
da cinematografia do diretor, não um mapa de como ver, mas sinais,
pistas que podem ou não ser seguidas, reinventadas como se quiser.
No intuito de gerar curiosidade e instigar os leitores a descobrir um
universo amplo que aponta para muito além dos grandes grandes clássicos
O Anjo Nasceu e Matou a Família e Foi ao Cinema.
Em cada curta, em cada video, Bressane se transmuta inteiro e faz de sua
obra um objeto novo e revigorado, único e indispensável.
Ainda assim , aceitamos
o desafio e pedimos ao crítico João Carlos Rodrigues (que
estará num Debate no Dia 19/10 no CCBB) que nos destaca alguns
filmes, os seus "prediletos" dentro da programação.
A Contracampo também aproveita o momento e indica alguns de seus
filmes favoritos – vamos a eles:
A) De João
Carlos Rodrigues:
Bethânea
Bem de Perto (1966)
Entre sua estréia
em 1965 no show Opinião e a consagração popular
dos anos 70, Maria Betânia teve um período cult, sem
gravar discos, cantando em pequenas boates, Um momento raro de sua carreira,
só registrado neste documentário, um dos primeiros em som
direto feitos no Brasil. Exibido no cinema Paissandú, o público
mauricinho estranhou sua androginia e voz rascante, e ensaiou uma vaia.
Um espectador levantou-se protestando ("Maria Betânia é
um gênio!") e foi retirado da sala escura aos catiripapos,
Era Caetano Veloso. Cinema polêmico é isso aí.
O
Anjo Nasceu (1969)
Tudo
neste filme parece premeditado para o crime de assassinar a gramática
cinematográfica tradicional. Nunca se tinha ousado tanto no cinema
brasileiro, nem no Cinema Novo, contra o qual O anjo nasceu é
uma espécie de manifesto. Começa com a tela negra e termina
com o longuíssimo plano de uma estrada vazia ao som de uma toada
de Dorival Caymmi. No intervalo, dois bandidos fazem e acontecem, sem
explicações sócio-políticas. Um clássico
da anti-obviedade
Cuidado,
Madame! (1970)
Um
dos melhores produtos da fase Bel-Air do diretor, que inaugura, já
no título, o humor até então completamente ausente
da sua obra anterior. Duas empregadinhas matam as patroas, como serial-killers
sedentas de consumo e felicidade. A liberdade de improviso das atrizes
Maria Gladys e Helena Ignez é total, assim como a da câmera.
A filme começa e depois se dispersa como um poema libertário
que une influências heterogêneas: a peça de Jean Genêt
As criadas e as chanchadas de Watson Macedo. Pouco conhecido, merece
ser reavaliado pelas novas gerações.
A
Agonia (1976)
Produzido pela Embrafilme na gestão Roberto Farias/ Gustavo
Dahl, esse é o primeiro filme de Bressane feito com um orçamento
razoável. Mas se engana quem pensar que por este motivo o cineasta
fez alguma concessão ao mercado. Pelo contrário, é
um dos seus filmes mais radicais e malditos, com direito a citações
de Mário Peixoto. Dois seres escombros andam pra lá e pra
cá por locais deslumbrantes da Cidade Maravilhosa, e nada acontece,
numa agonia sem fim. Uma cartela define tudo em uma palavra: obsessonho.
B)
De Contracampo:
Memórias
de um estrangulador de Loiras
(1972)
Único
filme de Julio Bressane realizado no exílio em condições
de exibição, Memórias é um ensaio instigante
sobre a repetição da imagem cinematográica, partindo
da obsessão de um homem, vivido por Guará, que mata repetidamente
o mesmo tipo de mulher, nos mesmos lugares, da mesma maneira. Filmado
nas ruas de Londres, o filme tematiza (em suas entrelinhas) a recepção
do público à linguagem do cinema, através da repetição
de ações e clichês, fugindo das tentações
deterministas, num espetáculo de investigação dos
códigos da narrativa cinematográfica.
Viola
Chinesa (1976)
Um
pequeno curta-metragem, quase nunca visto, traz um curioso diálogo
direto entre Julio Bressane e Grande Otelo, onde, num misto de texto decorado
e de improviso, chegamos a um pequeno manifesto pelo cinema experimental
brasileiro. Chamado de "último filme da Belair", Viola
Chinesa traz ainda a primeira parceria entre o fotógrafo Walter
Carvalho e Julio Bressane, repetida, recentemente, no longa em finalização
Filme de Amor.
Tabu
(1982)
Um
marco na obra do cineasta, o filme protagonizado por Caetano Veloso é
a expressão máxima do entrecruzamento da cultura popular
e erudita, característicos do cinema de Julio Bressane. A intercalação
da narrativa fragmentada com as imagens de filmes pornográficos
do inicío do século XX, remete-nos também ao média-metragem
Cinema Inocente, e à defesa irônica que o diretor
faz de um cinema dito Erótico. O Lamartine Babo criado por Caetano
Veloso tem reflexos diretos em toda a obra posterior do cineasta, chegando
até ao Mário Reis, de O Mandarim (1995).
Sermões
(1989)
Um dos
trabalhos mais precisos e intensos de Julio Bressane, Sermões leva
ao extremo a intertextualidade comum à obra do diretor, costurando
as palavras de Padre Antonio Vieira com imagens de arquivo e citações
cinematográficas (de antigos filmes de aventura ao cinema de Orson
Welles) que alcançam um dos diálogos intersemióticos
mais imprevisíveis e impressionantemente vivos da obra do cineasta.
Com uma interpretação inesquecível de Othon Bastos,
o filme ganhou, à época, o prêmio de melhor direção
no Festival de Brasília.
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