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E, no entanto, nada disso forma um enredo. Os personagens não se constroem, a intriga não se arma nunca. É que Bressane pegou um certo tipo de filme, digamos o filme policial norte-americano, branco e preto, classe B, anos 50 e compôs O Rei do Baralho usando os elementos ambientais que faziam o jeitão desse tipo de filme, um jogo paródico. No filme modelo, tais elementos servem para contar a história, não devem ser apreciados em si. Aqui, eles devem ser apreciados em si. Eles são colocados no filme de modo desarticulado (em termos de enredo). Temos a impressão de conhecer tudo o que aparece no filme, porque já o vimos 50 vezes em inúmeros filmes, e ao mesmo tempo uma impressão de imprevisto, porque o ritual narrativo não está aí para amarrar estes elementos que conhecemos tão bem. O Rei do Baralho se constitui numa excelente aula sobre cinema tradicional. É um filme didático: a título de exemplo, pode-se citar o uso do corte, da passagem, de uma imagem para a seguinte. O corte no filme pode ser feito de modo totalmente arbitrário, não encadeando uma imagem com a seguinte, de tal modo que tomemos consciência do ato físico de mudar de imagem (que é pecado no filme narrativo tradicional). Outras vezes, o corte obedece mais ou menos às regras tradicionais, como numa sequência de Grande Otelo caminhando pelas pedras: a paisagem, entra o ator, em cortes sucessivos nos aproximarmos dele até ver só sua cara, em seguida voltamos a vê-lo na paisagem. Só que as durações das imagens não obedecem às regras tradicionais, nem se encaixam na narração da história; o resultado é que da sequência tradicional sobra apenas o esqueleto perfeitamente visível. Ou ainda: o corte pode ser usado de modo rigorosamente tradicional, o que ocorre no momento em que Grande Otelo apresenta sua companheira aos amigos, o casal se afasta, e, na imagem seguinte, temos a reação às regras clássicas da montagem, é tão inesperado, que apesar dos espectadores estarem perfeitamente treinados para não percebê-lo, ele se impõe com uma evidência absurda. O modelo é o policial americano classe B: não exatamente. É este o modelo porém revisto pelo cinema brasileiro dos anos 50, particulamente a chanchada. O Rei do Baralho mostra o estúdio onde foi filamdo: a Cinédia (Jacarepaguá), que teve seu apogeu nos anos 30 com Ademar Gonzaga e Humberto Mauro. O convés, o bar, o botequim são ambientes de chanchada, e os dois atores principais também: Grande Otelo e Wilson Grey (este tendo sido inexplicavelmente sacrificado em Assim Era a Atlântida). O filme se envolve portanto em toda uma "cafonice" dos anos 50, boleros, trejeitos, piadinhas de duplo sentido conforme manda o figurino, etc. A sua relação com a chanchada dá a O Rei do Baralho uma posição estranha: é a paródia da imitação / paródia (brasileira) do filme americano. Uma paródia ao segundo grau, que faz ressaltar o processo dependente de produção cultural que foi apontado no comentário sobre Assim era a Atlântida 1. Ivan Cardoso, autor de filmes em S-8, foi assistente de Bressane neste filme. Durante a realização de O Rei de Baralho, Ivan filmou a filmagem, aproveitando os elementos paródicos elaborados por Bressane. Partindo da chanchada, passando por Assim Era a Atlântida, e chegando ao Rei do Baralho e ao filme S-8 de Ivan, cria-se uma cadeia de paródia/imitação, uma espécie de vampirismo cinematográfico que desvenda um dos principais mecanismos de eleboração da nossa cultura. Jean-Claude Bernardet |
1. Ver Movimento, nº19 |