HABEMUS PAPAM
Itália/França, 2011

O reconhecimento internacional alcançado por Nanni Moretti com Caro Diário e Aprile oferece o risco de transformar o gesto autobiográfico destes filmes em estigma autoral. Não surpreende, pois, que Habemus Papam tenha sido recebido como um trabalho careta, convencional ou até mesmo clássico, se o paradigma das expectativas se concentra em conceitos da moda, como a autoficção, ou mesmo no dualismo sempre cansado e raramente útil entre a ficção e a não-ficção.

O que estas noções escondem é um movimento mais óbvio que sublinha o trabalho de Moretti, e que reside em sua atitude cronista. Ainda que incorpore das mais diversas maneiras o registro realista, a informação biográfica, a narração em três atos, o flerte com o gênero por meio da tipificação cômica, ou que se arrisque em uma experimentação poética ou fantástica, sempre perdura em seus filmes o gesto do cronista que se dirige à realidade mais imediata, seja para capturá-la no dado momento, seja para ficcionalizá-la, mas sem jamais confundi-la com naturalismo moribundo (este sim não tem qualquer contato com a realidade porque a confunde com os seus próprios e mais desgastados signos).

Moretti confere, neste processo, um papel importante a seu ego, que serve como ponto de inflexão a partir do qual os filmes assumem variadas formas. Isso nunca implica num aprisionamento à subjetividade do autor, mas, pelo contrário, permite a tomada de posição (moral, política, estética...) diante do mundo. Por isso, obviamente, a pessoalidade do cinema de Moretti não se encontra em algum mergulho isolado numa bolha de sensorialidade individual, mas prima pela objetividade do real.

Já a partir das ficções mais maduras dos anos 80 (A Missa Acabou, Bianca), a decupagem denota, de modo geral, o tom de uma observação testemunhal do espaço típica do cinema moderno, servindo mais à progressão narrativa e sua organização topográfica que à expressão dramática associada à identificação psicológica. A manifestação dos sentimentos é filtrada por um olhar predominantemente objetivo, que é dirigido aos protagonistas inseridos em seus espaços – em suma, é uma arte da encenação, da atuação, e até certo ponto da palavra e da pontuação musical.

Em Palombella Rossa, o tom torna-se radicalmente transgressivo com as convenções por meio das intrusões simbólicas de mais diversos personagens, ocasional dissonância da imagem e do som, desabafos intelectuais, incertezas políticas, situações metafóricas, e toda uma gama de fragmentos que coloca as aflições do protagonista e alterego de Moretti em um estado de suspensão quase neurótica. Em Caro Diário, outra mudança de abordagem organiza três episódios que revelam uma nova disposição do diretor de abrir-se ao real, em tom de crônica confessional, gesto que seria parcialmente conservado em Aprile, mas numa abordagem mais articulada e orgânica com as exasperações de Moretti.

Em O Quarto do Filho, o ego deixa de ocupar o lugar central, o que em nada compromete a pessoalidade de sua visão ou mesmo a atenção dedicada ao cotidiano urbano de Roma (as fachadas e os bairros que havíamos conhecido em Caro Diário e até mesmo uma festa de rua são marginalmente absorvidos pelo espaço do filme sem qualquer casualidade significativa). Neste filme, um doloroso luto familiar é apresentado à distância exata que não exige do espectador sofrimento no lugar dos protagonistas (Moretti não é um sádico), mas solicita engajamento e compaixão pelo sentimento alheio – como, por exemplo, na cena em que Paola (Laura Morante) percorre o quarto cheio de objetos deixados pelo falecido filho.

A objetividade desse olhar, porém, não denota frieza passiva, mas um jogo entre proximidade e distância a que Moretti aplica a mais delicada elegância. Podemos vê-la na cena em que o pai tenta escrever uma carta para informar a uma jovem garota – a namorada que o seu filho conhecera em uma viajem – a respeito do acidente fatal que vitimou o menino. A cena nos apresenta Giovanni (Moretti) sentando-se à mesa e começando a redigir a carta, mas à medida que tem dificuldades para encontrar as palavras certas, percebemos que algo atormenta o personagem; vemos seu rosto em primeiro plano, levado por uma tenra aproximação de câmera, enquanto flashbacks breves que mostram o convívio do pai com seu filho são sucessivamente intercalados na montagem. Por fim, um corte nos retira de um destes lampejos de memória e nos coloca diante do plano frontal de Giovanni levemente modificado, dessa vez com um outro corpo invadindo a borda inferior esquerda do quadro: a aproximação dramática que estava em andamento é interrompida num estalo ao mesmo tempo em que nos damos conta de uma elipse (pois Giovanni não está mais sozinho em seu escritório) que sintetiza a natureza e a duração prolongada do estado de angústia embriagada do personagem.

O Quarto do Filho está, assim, muito distante dos reaction shots ásperos de Ecce Bombo, do rosto devastado de Michaele em Bianca, das imagens livres de Caro Diário, ou dos monólogos aflitivos proclamados dentro de uma cozinha em Aprile. Em outras palavras, o interesse renovado pela ficção de Moretti em O Quarto do Filho revela também, à altura da cena, uma vontade do cineasta em aninhar seus personagens numa dramaturgia peculiar ausente em seus filmes anteriores. Esse trabalho sutil, atravessando também o protagonista de O Crocodilo, é componente importante para dar conta do aspecto mais elogiado e unânime a propósito de Habemus Papam: o desempenho de Michel Piccoli como cardeal Melvile.

Eleito pelo conclave para ser o novo pontífice, o cardeal precisa dirigir-se aos fiéis, mas no momento crucial desaba em crise e recusa-se a assumir o seu posto. As estruturas institucionais estão abaladas e o mundo está consternado com a ausência do novo papa. Providências são tomadas, mas Melvile rompe o cerco e foge para misturar-se aos habitantes da cidade em busca de uma nova consciência de seus desejos. Enquanto isso, do Vaticano à mídia, o Papa revela-se uma figura de interesse puramente normativo e simbólico, engrenagem de seus respectivos sistemas de significação e poder. Por isso, basta um teatro de sombras e alguns caroços de frutas devoradas para tornar crível uma mentira pública orquestrada por um pacato assessor de comunicação.

Moretti decide dar relevo ao drama de um protagonista que, depois do primeiro quarto de projeção, não é mais que um velho assustado que agoniza entre o cômico e o patético. De início, Melvile é inserido em espaços atravessados por pessoas anônimas ocupadas em seus hábitos prosaicos, da rua tomada por passantes e músicos mambembes aos lojistas ou panificadores atarefados, o que estabelece uma oposição à pompa e opulência da Basílica de São Pedro.

Em algumas cenas, no entanto, é necessário ir mais longe, e Moretti articula magistralmente a presença seu protagonista: Melvile sentado em um ônibus, apresentado de perfil em plano fechado, balbucia palavras incompreensíveis em voz baixa, para, em seguida, um plano frontal aberto situá-lo; o personagem se dá conta do lugar que ocupa e dos olhares que recebe de outros passageiros. Ele, no entanto, continua o seu murmúrio até que somos entregues ao primeiro plano seu rosto, o que permite à atuação de Michel Piccoli desenvolver a profundidade do personagem. Ela não passa por qualquer expressão fenotípica estanque, mas é atravessada por uma face lacônica centralizada e conduzida por um olhar que ora se perde no fundo dos pensamentos, ora recobra a atenção e se dirige para as imediações (seja pela interrupção de um homem que aos berros tenta salvar seu relacionamento, seja pelo desconcertante olhar de um estranho). Nestes momentos, as imagens não assumem a frontalidade com o rosto de Melvile, mas voltam a inscrevê-lo no espaço, adotando até mesmo o ponto de vista subjetivo. A cena conta ainda com uma terceira frente de planos recorrentes que, sem interrupções no som direto e na trilha sonora, mostram a cidade em toda sua escuridão furada pelas luzes de casas e apartamentos. Sem assumir um ponto de vista claro no espaço cênico, estes planos (com uma sensação peculiarmente elíptica em um deles) conduzem o ritmo da cena e auxiliam a montagem, mas também delegam ao personagem o peso de suas responsabilidades. O mundo exterior da cidade abriga os medos de Melvile e parece ser também o destino de seus pensamentos distantes.

Se há um bom desempenho do ator, aqui ele é também mérito de um apuro de direção que movimenta a proximidade da instância narrativa com o drama do protagonista de maneira quase pendular, apresentando sua ansiedade íntima diante da escala humana da realidade mais imediata e, depois, diante da carga coletiva, social ou institucional que está implicada. Esta última é freqüentemente trazida à tona pela televisão, com mais destreza em uma cena que alterna Melvile, os personagens de um grupo teatral com que está a jantar, e uma televisão que transmite um programa jornalístico em que um especialista verborrágico busca, sem sucesso, fabricar uma explicação para o sumiço do pontífice.

Nesse aspecto, o personagem de Melvile não é o único a ganhar relevo. Os demais cardeais confinados, com tempo livre e mediante o vazio de protocolo que pudesse indicar-lhes o que fazer, revelam-se pessoas ordinárias em suas atividades corriqueiras, painéis de personagens que às vezes beiram stock characters cômicos, e que misturam senilidade infantil e recalques psicológicos. Eles reencontram as emoções mais básicas e universais da vida graças à intervenção de um psicanalista (Moretti) que paradoxalmente vive o confinamento que deveria ser do pontífice eleito.

No entanto, o espelhamento mais agudo de Melvile (porque reflete uma personagem igualmente desviante) é a do ator fora de controle, que representa ininterruptamente A Gaivota, de Tchekov. Dois lados da anormalidade: um recusa o papel que lhe foi concedido enquanto outro abraça todas as representações possíveis em excesso e sem restrição. O primeiro renuncia o seu palco para descobrir-se na vida comum enquanto os segundo busca o placo que é único espaço social capaz de abrigar, mas não conter, as performances incessáveis. Este apressa-se em colher todos os aplausos quando o teatro é tomado pelos cardeais, mas a láurea é direcionada ao ator sentado em meio ao público que não quer recebê-la.

Em Habemus Papam, Moretti se mostra um encenador extremamente articulado (basta vê-lo nas cenas de votação do novo pontífice ou na abordagem do papa pelos cardeais no teatro), mas nos entrega também, o que é mais inesperado, um protagonista atípico para sua filmografia, certamente o mais fechado e afásico deles (contrariamente às freqüentes erupções dos alteregos de outrora), tomado por seu longo e lento enfrentamento de crise pessoal, o que exige um refinado trabalho de aproximação da personagem, efeito que não se obtém por meio de alguma manifestação flácida de afetos, mas mediante certa dureza que a presença na realidade impõe.

Nikola Matevski


 Agosto de 2012