eu receberia as piores notÍcias dos seus lindos lÁbios
Beto Brant, Brasil, 2011

Por que precisamos de tanta mediação? O ato de filmar, a apropriação do real, já não basta? Um homem diante da câmera não é suficiente, tem que ser um artista, melhor: um fotógrafo. Se vemos um índio, ele precisa usar um walkman? No plano seguinte, quem sabe um ipod? Se é de um simples animal de estimação que tratamos: gato, cachorro, passarinho? Não. Queremos um camaleão. Até um pistoleiro de aluguel é palhaço de circo entre um trabalho e outro.

Essa é a esquizofrenia do cinema brasileiro contemporâneo de viés naturalista. Tudo precisa ser particularizado pelo exótico. Imagina-se que o interesse surja irremediavelmente por aquilo que nos separa do outro, não nos aproxima. Tal estranhamento, no entanto, não gera sequer a consciência bretchiana da representação, ao contrário, aliena pelo conforto do diagnóstico: as pessoas são estranhas mesmo e a realidade imutável. Nada podemos fazer. Reiteramos, pela acomodação do olhar, através de filtros de toda ordem, nossas convicções, como quem procura numa crítica de cinema sempre sua própria opinião sobre o filme.

Já vimos tudo isso antes e uma vez mais em Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Beto Brant e Renato Ciasca. Aqui, naturalmente, temos um triângulo amoroso formado por um fotógrafo forasteiro, uma ex-prostituta e um pastor progressista no interior do Pará. Há, é claro, o policial contemplativo, o jornalista de traço aristocrático e decadentista, entrincheirado em citações literárias e sobre o qual só vislumbramos o gosto pela fofoca, a despeito da promessa inicial de jornalismo engajado – a personagem nos é apresentada buscando fotos de presos, aparentemente envolvidos em questões agrárias.

Não importa o quão inverossímil essa galeria, assim descrita, pode soar. Nesta altura já nos acostumamos à estilização. É sempre o outro que vemos nesse jogo de cena tautológico: faz-se sexo em rio banhado de tons crepusculares, em casa, enquanto os amantes respingam tinta um no outro, no sofá da sala e em todos os outros lugares incontornáveis de nosso imaginário – talvez à procura de uma cena que também se insira nessa memória coletiva com força e perenidade.

No entanto, perto do final do filme, acontece alguma coisa. Longos planos aéreos de trechos desmatados da floresta amazônica, a violência daquele verde em oposição à terra batida e exposta das madereiras, reconfiguram, pela textura daquelas imagens quase tácteis, o discurso ecológico do pastor em sua cena de apresentação e, sobretudo, a mera reportagem ou registro documental. Está ali, diante de nossos olhos, alguma desarmonia, que amplifica o real – tais quais as primeiras imagens da floresta em chamas de Iracema, de Jorge Bodanzky e Orlando Senna.

O jogo muda a partir de então. Lavínia (Camila Pitanga), a ex-prostituta resgatada pelo pastor, a esta altura já está catatônica. Seu amante, o fotógrafo Cauby vivido por Gustavo Machado, perdera um dos olhos e usa um tapa-olho que o distingue dos demais. Curiosamente, é quando essa distinção física e mental se impõe ao filme, às personagens, que Eu Receberia... ganha relevo, vigor, liberdade. Pena que já nos resta pouco tempo para conviver com eles. Com os aleijados e os loucos. Parece que são deles que o cinema brasileiro atual precisa para nos tocar.

Adolfo Gomes


 Agosto de 2012