anchieta, josÉ do brasil
Brasil, 1977

Anchieta, José do Brasil compra toda a pompa dos filmes históricos. Realizado na época áurea de pujança da Embrafilme, o projeto recebeu um investimento fora do comum à sua época, sendo realizado numa linha de apoio a filmes históricos recém-criada. Um corte inicial foi feito com três horas de duração. Tudo isso já apontaria para um objeto curioso na história do cinema brasileiro, mas o filme de Saraceni supera o puro elefantismo. Trata-se de uma mistura incomparável de cinebiografia, épico histórico, documentário e composições-tableaux.

O essencial de se compreender aqui, em primeiro lugar, é que Saraceni vê o signo histórico como irredutível. Sequências inteiras são encenadas com diálogos em tupi sem tradução ou legendas. A História é encenada sob a forma de signo mudo, que deve ser apreciado tão somente em sua exuberância pictural – aquela dos planos-tableaux. Mais do que isso, a opção majoritariamente pelo plano-tableau cria uma narrativa suspensa e interrompida, uma vez que o tableau tende à imobilidade e a um estilo não-narrativo. Os planos resistem ao raccord como as imagens resistem à falsa fluidez da História e do relato organizados. As sequências são como blocos ou esquetes rigidamente separados, aparentemente inspiradas pelos autos escritos por Anchieta que em determinado momento Saraceni chega a encenar (aqui, trata-se de atingir a História via literatura/teatro). O signo histórico é irredutível na medida em que encontra expressividade na sua própria pulsação, no seu brilho, uma imagem obtusa que dá as costas ao olhar didático. Anchieta é o autêntico pesadelo dos professores de história atrás de uma vídeo-aula para a sala de aula.

Vem também dessa mudez o caráter documental do filme. Da História, contemplamos apenas seus signos exuberantes e coloridos: os figurinos e maquiagens, as paisagens naturais, praias e florestas, os textos, aqueles índios que olham para a câmera. Tudo é fictício, mas é também verdadeiro como textura e matéria diante da câmera. Este parece ser justamente o paradoxo do plano-tableau, pois, se por um lado a câmera nos impõe um olhar puramente pictural sobre a cena, por outro, o aspecto vivo da encenação denuncia seu artificialismo. É como se o tableau-vivant fosse, por excelência, um documento de sua própria construção, uma vez que, libertada do naturalismo narrativo, a encenação se volta para um puro registro das poses e dos objetos, que deixam seu rastro pesado na imagem, no meio do caminho entre o corpo e a abstração buscada.

A decupagem valoriza composições frontalizadas e abertas. Mesmo nos planos mais próximos, os enquadramentos preservam frequentemente um bom “teto” entre a cabeça dos personagens e a borda do quadro. Para  além dos homens, da biografia e da história, a câmera parece sempre querer enquadrar uma matéria que os ultrapassa. Esta matéria "além" é simplesmente o Brasil semi-virgem com o qual o protagonista se depara e ao qual rapidamente se integra. Reside justamente aí o caráter épico do filme, pois não se trata de uma mera (cine)biografia, mas da crônica de um país em formação vista sob o ponto-de-vista religioso. A história de Anchieta se confunde com a própria história do Brasil, como bem aponta a cena final em que o cortejo de seu funeral é transformado em desfile carnavalesco, aludindo à ideia de um sincretismo que o protagonista emblemou como poucos. 

O aspecto épico de Anchieta é apenas um capítulo na trajetória de um cineasta artisticamente ambicioso, dono de um olhar verdadeiramente cinematográfico diante do mundo, algo notável desde Porto das caixas até O gerente – e que se verifica aqui pela arriscada opção pelos enquadramentos tableaux. Deriva dessa mesma ambição também, certamente, o aspecto quebradiço de sua obra, que, longe de residir em um ou outro projeto em particular, parece estar no interior mesmo de cada filme – uma fragilidade vigorosamente exercitada, transformando-se em alguns casos na própria fonte de luz de seu cinema. Se Anchieta não chega a ser o ponto mais alto na obra de Saraceni, ele não deixa de valer, por sua ambição e sua inquietude, como lição a um cinema brasileiro a cada dia mais acomodado.


Calac Nogueira


Janeiro de 2012