VONTADE INDÔMITA
King Vidor, The Fountainhead, EUA, 1949

Vontade Indômita se diferencia um pouco da grande parte dos filmes americanos que se propõem a apregoar os valores fundadores de sua nação, pois aqui não é apenas a saga do self-made man que está em pauta (esta até existe, mas é mais uma figura dramática que um ponto de chegada). A verdadeira questão do filme está num desdobramento mais específico e mais profundo desta ideia clássica, e que diz respeito à dicotomia entre o individualismo e a visão do coletivo, entre o homem como ser autônomo ou como parte constituinte da engrenagem social solidária. A posição assumida é muito clara: realizado em plena época do macarthismo, é o que se pode chamar de um autêntico filme “de direita”, onde a visão “humanista” camufla a ojeriza diante da ação do coletivo sobre indivíduo, vista necessariamente como castradora da autonomia individual e da subjetividade livre.

Seria totalmente possível imaginar um filme que partilhasse fervorosamente dos mesmos valores do filme de Vidor, aplicando-os, no entanto, a um contexto mais específico e concreto, por exemplo a ascensão do nazismo nas décadas de 1920 e 30 na Alemanha (este filme imaginário talvez já exista em versão paródica: O Grande Ditador). Neste caso, se desenharia o clássico episódio da tomada de consciência diante de um imperativo atroz e incontornável (e o mesmo humanismo do filme se identificaria fatalmente com o discurso “de esquerda”). Mas este imperativo circunstancial não acabaria, ele mesmo, por esvaziar todo o conteúdo político do filme? Que sentido político pode haver nas escolhas de um homem acuado pela sombra absurda do nazismo? Voltemos ao filme de Vidor: não é um simples filme de direita. Vidor nos oferece uma visão ampla, do todo. E ele o faz da forma mais livre possível, como um panfleto espetaculoso e gratuito, de uma ambição desmedida que quase compromete qualquer credibilidade naturalista. Mas é justamente nesta ambição, nessa liberdade, nessa gratuidade, nessa indelicadeza mesmo – além, claro, da genialidade de Vidor – que Vontade indômita se afirma, em termos estritamente formais, como talvez o maior épico sobre a modernidade já realizado.

Essa dimensão épica resulta dos espaços (físicos e simbólicos) por onde os personagens circulam. São duas instâncias básicas: a arquitetura (o espaço físico, mas também estético e simbólico, e é aí que reside o ponto da vida de Howard Roark, o protagonista interpretado por Gary Cooper) e o jornalismo (a opinião pública, os valores, a moral). Há homens que trabalham projetando espaços (os arquitetos, como Roark) e outros que trabalham domando a opinião pública (os jornalistas). Este mundo, a despeito de seus contornos ‘grosseiros’ (ou simplesmente dramatizados, diríamos), é um mundo completo – se a opinião pública é responsável por ditar como pensamos, cabe à arquitetura definir o modo como experimentamos o espaço. E o que se pode dizer sobre este mundo de Vontade indômita? É um mundo, primeiramente, ainda em construção (se há uma mitologia que ecoa aqui, é a da América ainda como uma terra virgem, sem história, pronta a ser dominada por homens trabalhadores e visionários de um espírito moderno). Mas é também já um mundo frio e duro, prematuramente dominado por forças corruptas.





Se é Roark que encarna o herói capaz de salvar a América da corrupção das massas e da mediocridade do senso comum com seu idealismo incorruptível, vale notar, no entanto, que ele o faz  “apenas” como arquiteto. Sua arma é seu próprio trabalho (no sentido de uma obra de arte, que expressa uma verdade daquele que a produz – e cuja honestidade intrínseca é o próprio pilar responsável pela evolução do homem, o passo avante à mediocridade). E é nessa passagem de um concreto (a arquitetura) para o simbólico (o “gênio” e a “modernidade” de que os trabalhos de Roark são emblemas) que o filme de Vidor encontra a expressão do sublime.

Mise en scène aqui pode ser entendia nos termos das relações metafísicas que os personagens estabelecem com o espaço cênico. Cada gesto do filme é imbuído de um sentido colossal – vide o plano de Roark no alto de um arranha-céu, com Dominique subindo em um andaime em direção a ele, nas palavras de João Bénard da Costa, “o plano mais fálico da história do cinema.” E, no entanto, tudo é tão devastadoramente concreto, de modo que aquelas maquetes assombrosas de arranha-céus, causa de amor e desolação de Roark, parecem estar em cada plano do filme.

Até aqui não fizemos mais do apenas narrar o que é evidente diante de uma visão do filme. Deixemos então que a evidência fale por si mesma:













(Texto escrito por ocasião da exibição do filme na mostra Luc Moullet, CCBB/RJ)

Calac Nogueira


 Agosto de 2011