TOY STORY 3
Lee Unkrich, EUA, 2010

Toy Story 3 emerge do magma das tendências mais pregnantes desse fim de década para se afirmar como uma das aventuras mais radicais do cinema recente. O ritmo non-stop, impressionante mesmo para o padrão dos games e filmes de puro movimento, e a intensificação de uma montanha-russa nas inflexões dramáticas, longe de acobertarem a densidade da trama, a trazem para superfície, gerando uma obra de fortíssimo impacto emocional.

Tudo aquilo que já existia nos dois filmes anteriores aqui é potencializado, em especial o sentimento de anarquia presente no funcionamento de uma vasta comunidade de personagens regidos pela diversidade e por uma imaginação selvagem. Se arquétipos são inerentes à animação de modo geral, o que faz dos personagens de Toy Story seres de existência tão marcante é a ênfase em suas singularidades. E num conjunto de singularidades: o número de personagens dividindo a cena – e eles a dividem de forma genuína – é surpreendente e traz a percepção de um coletivo que só sabe existir como tal.

O espírito da “escapada”, muito bem trabalhado no segundo filme, volta aqui menos como mote narrativo, e mais como fundamento profundo ligado ao arcabouço da trama. É como se o espírito da ingenuidade (e verdade) do movimento, que animou os primeiros grandes filmes do cinema, sobretudo os de Buster Keaton, fosse resgatado para fazer eco a um outro tipo de pureza, a da alma. Sim, porque se Toy Story retorna ao mundo infantil, ele o faz imbuído de uma busca obstinada por uma outra lógica, uma lógica perdida, um olhar mágico qualquer que os grandes homens ignoram (ou perderam). E neste terceiro episódio este retorno utópico é violento: todas as questões de passagem do tempo e do medo do abandono dizem respeito à dor terrível do esquecimento que assombra o filme.

O heroísmo e o vilanismo são, pois, construídos a partir de valores e distinções fundamentais: de um lado, a lealdade, a nobreza, a sinceridade; de outro, o rancor, a mágoa, a amargura. Em cada uma de suas esquetes e situações, o filme se afirma sob o signo do tempo, do momentâneo, do provisório, do acaso, colocando em evidência um destino em aberto que é construído a cada ação ou reação positiva ou negativa. O duplo mudança-permanência, caro à estrutura narrativa clássica, revela-se aqui uma força de transformação sem reservas. Afinal, a fidelidade em jogo não diz respeito à manutenção de um estado, mas de uma integridade. Manter algo intacto é rejeitar a destruição, mas saber incorporar as alterações trazidas pelo tempo. Um brinquedo pode desbotar e gastar, mas não pode ser estraçalhado.

Há por certo algo de espantoso na carga ética mobilizada por este filme, mas talvez o elogio gráfico ao movimento e à caracterização da matéria o sejam ainda mais. Não falo, evidentemente, apenas da técnica de animação capaz de representar em detalhes os pelos do urso de pelúcia ou a textura plastificada da pele do boneco Ken, mas de uma compreensão profunda dos desígnios físicos dos materiais e das formas. A graça, portanto, não vem apenas das paródias ou dos malabarismos acionados para engendrar as fugas, mas de uma caricatura do mundo que demonstra enxergar para bem além das aparências. A movimentação dos bonecos Barbie e Ken, por exemplo, traduz à perfeição a articulação dos brinquedos no mundo real, mas também os caracteriza em sua natureza “interior”: travados, de movimentos prescritos e limitados, eles correspondem ao mauricinho e à patricinha moldados pela sociedade.

Toy Story 3 está repleto de genialidades como essa, que o tornam uma experiência de estímulos ininterruptos para o espectador. O maior de seus trunfos, porém, não está nas tiradas engraçadíssimas e nos intermináveis gracejos de cena, mas justamente no alcance humano da narrativa. O esforço de generosidade que o filme aciona é amplo, e não apenas se dirige às memórias e experiências pessoais de quem assiste, como abarca um leque quase infinito de situações concretas. De fato, fazia muito tempo que um filme não se dirigia ao mundo das  pessoas reais de forma tão potente quanto este.


Tatiana Monassa


 Agosto de 2011