os centros culturais e a censura

O episódio recente da censura do filme A Serbian Film, talvez por ter causado certo espanto, sobretudo aos mais ingênuos, já foi muito alardeado. Com rapidez e facilidade, já se expôs muito sobre o caso, alegando sua natureza inconstitucional, a fragilidade de seus argumentos cênicos ou estéticos, e finalmente concluindo, em coro uníssono (igualmente entoado, por razões oportunistas, pelas grandes mídias), a defesa em favor da mítica liberdade de expressão. Como é usual nos casos que ganham subitamente muita repercussão, a maioria da produção textual recai sobre as defesas mais automáticas e imediatas, pouco importando as origens reais que levaram a tal acontecimento. Essas origens não têm relação exatamente com o conteúdo das cenas deste filme em particular (a pedofilia, a chacina, os choques mais abjetos etc.), tampouco com a eventual hipocrisia de certos políticos e seu ganho publicitário indireto. O que o episódio permite esclarecer, na verdade, é a respeito do lugar que a cultura ocupa no país.

1. Os mal-entendidos

A maioria, em geral contrária à censura, não compreende isso muito bem. Importa-se com o que é notícia, o que é informativo oficial, ou seja, com as especificidades do caso. Não à toa, facilmente toleram os argumentos dos censores, até os mais esdrúxulos. Discutem pedofilia, encenação, encenação da pedofilia, coisas muito específicas, coisas muito limitadas. A censura não atinge somente estes casos, os mais inauditos na sociedade. Por serem talvez os mais extremos, eles convidam o espetáculo, o boca a boca, o frisson e ganham rapidamente repercussão e adeptos. É fácil de se posicionar nestes casos, pois a censura ataca um evento isolado, raro, muito pontual. Tão fácil que se pode acabar a discussão com essa magnífica sentença, utilizada até mesmo (e talvez majoritariamente) entre enojados com o possível horror na tela: “vai ver quem quer”. A censura parece acabar logo ali, dobrando a esquina em que se cruza os direitos judiciais de exibição deste filme em particular.

Mas as censuras são, com freqüência, mais brandas que isso. Mais enraizadas, mais adaptáveis. Certamente menos espetaculares. Elas não precisam estar vinculadas a extremismos, às cenas mais “perturbadoras”, a personagens demoníacos e à espreita do mal. Elas tampouco dizem respeito a grupos específicos, aos “canalhas” do DEM ou a quem quer que seja. É ilusão acreditar que ela é uma exceção dentro do nosso cotidiano. Basta se debruçar rapidamente sobre todo este vocabulário de expressões atenuantes e sugestões relativizadoras que enfeitam o bem-pensar da produção textual do dia-a-dia, seja jornalística, seja acadêmica, como se tentassem conter o suposto preconceito, machismo, intolerância, seja lá o que for de uma obra, para encontrar a mesma raiz de um pensamento a favor da censura. Em todos os casos, exige-se o decoro, a cortesia, a polidez do tom e o bom emprego das palavras. O que expõe questões mais afiadas, mais audaciosas, mais questionadoras, tem que ser convidado a se retirar – ou, em outros casos, os de maior medo, banido duramente; ou em outros, mais arrogantes, ridicularizado e tornado desimportante. É dessa forma que os filmes vitimados não são os que evitam os problemas ou os que os tornam mais cômodos e agradáveis, mas sim os filmes que expõem problemas. A razão disso tudo (das censuras brandas, sutis, impostas a conta-gotas no dia-a-dia, às maiores, das altas instituições, dos partidos políticos e do judiciário) é que se prefere sempre o que for dócil, domesticado, de uma natureza intocável, de uma distância devidamente preservada, daquilo que esteja sempre fora de nós. Ou seja, e digo isso um pouco precipitadamente, prefere-se o que for um produto.
 
2. Os centros culturais

É sintomático que o caso em questão tenha se iniciado em um centro cultural (e sido apoiado por este), ao invés de no circuito comercial. No circuito, os interesses econômicos e imediatos comandam. Há também uma censura aí, sempre pouco comentada, gerada espontaneamente pelos interesses dos capitais privados. Uma lógica do jogo dita os filmes que são aceitos e os que são recusados – e todos eles, sem exceção, terminam por ser esquecidos, pois novos lançamentos vêm substituí-los. A preservação e a memória não estão entre em seus negócios. Neste contexto, os centros culturais deveriam agir como espaços de resistência. Ali os interesses financeiros seriam subservientes aos interesses culturais. Ali a cultura deveria ser não só estimulada e vista, mas – é bom que se lembre – mantida, preservada, guarnecida. Os lançamentos imperdíveis, as propagandas visuais, a euforia dos eventos passageiros, nada disso tem relação com acolher e estabelecer a cultura.

Agora vejamos o que acontece nos nossos centros culturais. A começar, chamam um banco, atraído por incentivos fiscais, para investir em cultura. Um banco que, como não poderia deixar de ser, quer fazer investimentos, ter “retornos” e projetar ali a sua imagem. Obviamente, a imagem que um banco quer projetar é a da grana, dos lucros, da alta das bolsas de valores. A arte lhes serve como um capital. Ali a cultura não provoca reflexão; aumenta a divulgação. Ela é como um evento, um acontecimento único, uma “oportunidade” (penso nos classificados de imóveis que exclamam essa palavra com avidez). Exibe-se muito e pode-se até ter uma programação impressionantemente variada e relevante, mas nada se preserva, nada se guarda em acervos, nada se vê sob a perspectiva do futuro. Na verdade, nem programar, nem mesmo definir sua programação, os centros culturais são capazes de fazer. É preciso de terceiros, de profissionais, de entendidos da área. A estes, oferecem a chance de “fazer cultura” durante um mês. Evidentemente, neste tempo diminuto, não é cultura o que se faz, mas badalação e burburinho. Logo que isso se percebe, os contratados não têm outra ambição senão a de serem bons mestres de cerimônias. O banco, por sua vez, só lhes exige tarefas promocionais: os catálogos gordos e requintados; uma programação extensa, mesmo que os filmes passem voando pelas telas; diversidade de eventos extras, como debates e palestras, como se os assuntos expostos fossem profundamente relevantes... Esses caprichos e ornamentos afastam, cada vez para mais longe, a questão mais básica: exibir filmes. Aí não importa se o filme exibido é No Quarto da Vanda, Couch do Andy Warhol, La Comédie du Travail ou Caravana de Bravos, que o cheiro que se sente entrando na sala de cinema é sempre o da grana. [Agora, quando vemos no MAM Lola Montès ou As Aventuras de Robin Hood com Errol Flynn, o cheiro que sentimos atravessando os corredores é sempre o de vinagre das películas. Taí uma ideia do que pode ser cultura, sobre a qual quero desenvolver mais adiante]. Não à toa as mostras culturais são reconhecidas pelo seu conceito, o seu invólucro, aquilo que transcende às obras em si. Importa que a ideia da mostra seja vendável – e o filme que trate de se adequar a esta ideia! Infelizmente uma das ideias mais comuns, mais aceitas, mais enfaticamente exaltadas, é a dos “autores”. Se antes era preciso dizer que o diretor de cinema dava “voz” ao filme, hoje não só acreditam que esta voz exista, mas que ela até mesmo prescinda dos filmes!

Peguemos um exemplo concreto, recente e bastante sintomático: a mostra Hitchcock no CCBB. Uma retrospectiva integral, completíssima. Mas qual seria a importância, talvez valha perguntar, de aglomerar todos os filmes de Hitchcock? Não seria o suficiente escolher os mais significativos da obra, ou os mais subestimados, ou mais esquecidos? E quem sabe só sua fase inglesa? Ou então só seus filmes coloridos? Ou ainda, sem nenhuma necessidade de outra justificativa, simplesmente os filmes que queremos passar? A verdade é que não interessa no que Hitchcock é importante e decisivo; sua importância é ser Hitchcock, o produto-Hitchcock. O que interessa é esbanjar que são centenas de minutos de suspense, como diz seu anúncio. E depois, passado um mês, um mês e meio, como se fosse natural, as luzes se apagam, o espetáculo termina. As cópias em 35mm voltam aos seus países de origem. O dinheiro gasto com todas as necessidades de projeção – legendagem eletrônica, transporte internacional e nacional de cópias, tributação da alfândega, etc. etc. – foi todo rasgado, ainda que se faça detalhadamente uma prestação de contas transparente e profissional. Ninguém mais precisa de Hitchcock. Caso alguém proponha o gordinho no próximo edital, não será aceito. Somente se, passado anos, ele voltar como “novidade”, poderá ser novamente aprovado, e outra vez o dinheiro será gasto e jogado pelos ares. No meio tempo, não há do que reclamar: Hitchcock vai continuar a ser procurado, lido, disponibilizado em quaisquer outros lugares (livrarias, DVDs, internet etc.).

É preciso lembrar que estamos falando de Hitchcock, este ícone pop, e não de uma retrospectiva completa de Joris Ivens ou de Raoul Walsh. Estes jamais receberiam o mesmo investimento, o mesmo prestígio, o mesmo “retorno de imagem”. E ainda que isso de fato acontecesse, logo suas “mostras” (= amostras) acabariam e entrariam outras em seus lugares. Tudo se esvai, exatamente como no circuito comercial, e a única coisa que permanece é a empresa, a logomarca, a instituição. Com a diferença que, no circuito, os negócios são transparentes: Harry Potter e Manoel de Oliveira não ocupam a mesma fatia do mercado. Já nos centros culturais, é preciso maquiar o conteúdo por um invólucro que lhe dá importância e imponência. Mas nem sempre dá para maquiar...

No RioFan, particularmente, não há nada a maquiar. Ele é um festival de um gênero muitas vezes associado aos produtos mais pré-formatados, aos mais industrializados (no pior sentido), sem contar que se trata de um gênero “menor”, de uma cultura mais “baixa”. O festival coloca em um centro cultural o que seria “cabível” somente nos cinemarks dos subúrbios, nas prateleiras empoeiradas das locadoras, ou então nas transmissões de TV das horas mais silenciosas da noite. São os empacotados, os que se amontoam em pilhas nas caçambas dos caminhões, os produtos anônimos e rapidamente descartados. O festival os acolhe simplesmente pelo que são: produtos da nossa cultura. Não há mendigagem de “acesso” ou “visibilidade”: o interesse pelos filmes é genuíno, sem falsa nobreza ou pose de erudição. E, para quem ainda não percebeu, no RioFan há curadores. Há quem tome decisões, faça escolhas, selecione a partir do material que é inscrito no festival. É um trabalho e é transparente.

Então, eis que surge este tal de A Serbian Film, filme, aliás, ambicioso e muito badalado, que não se limitou aos nichos dos festivais de terror e cinema fantástico. Polêmico e extremo, é bem provável que nem se encaixe tanto na descrição que eu fiz acima. Sua vulgaridade foi tida como ambiciosa, fato que lhe concedeu alguns frutos do sucesso, mas é a partir deste momento que ela também começa a ser tida como inadmissível. A violência talvez fosse justificada, quem sabe, se ela ocorresse em um local específico, em um contexto isolado e devidamente já reconhecido, como um tema grave e digno de nossa gratidão tal como a “guerra da Sérvia”. É por aí que se orientam os esforços do diretor, tentando vender seu filme como metáfora da devastação do seu país, mas de nada adianta: a guerra não está lá, na evidência do filme. Quem sabe sua audácia e suas “simbologias” poderiam ser aceitas caso fossem obras de um grande “gênio” internacionalmente consagrado, dando pompa e circunstância às ocasiões mais abjetas. Também não é o caso: trata-se de um estreante! Não teve jeito... Sem maquiagem, sem pedigree, sem retorno de imagem institucional, eis que chega a hora da censura, da repressão. Muito facilmente a arte torna-se um mal inabalável. E então a trupe dos assustados e temerosos logo se põe a lutar dignamente contra a violência, esbravejando que pedófilos podem se multiplicar pelas ruas...

3. Lucidez e indiferença

É Fritz Lang quem diz que não acha que as pessoas acreditam no inferno ou em um mal externo e imperturbável. E ele continua: “a violência se tornou, para mim, um ponto definitivo do roteiro. Ela tem uma razão dramatúrgica de estar lá”. A ele, não interessa o choque que a violência, a abjeção, o crime podem provocar, mas exatamente o contrário, o choque que produz e que particularmente conduz a essa violência. A pedofilia, a carnificina, a lei dos abutres, essas coisas não surgem à toa, sem mais nem menos, como uma pulsão subjetiva da ordem do incompreensível ou sob o comando do diabo ou de um mal autômato. O mal não está ali no sangue, no vômito, nas convulsões, no espetáculo das entranhas, em um irreconhecível “eu interior”. O verdadeiro mal está em outro lugar. Ele tem outras origens. Ele antecede o horror e antecede a repulsa. Sua origem, que não se esconde no inferno, é a intolerância, a condenação, o linchamento, a repressão, a censura. Este mal não precisa atuar nos corredores escuros, nos galpões abandonados, nas áreas inóspitas e insalubres: ele acontece nas ruas, a céu aberto, sem pudores, freqüentemente ovacionado pelo movimento das massas e das instituições, em um grande delírio do espaço público. Para se compreender isto, o que não é muito difícil, não se exige nojo, nem medo; exige-se somente lucidez.

Como já alertei, ainda não vi A Serbian Film, mas tenho a impressão de termos aqui um outro caso de violência. Uma informação do roteiro pode ser eventualmente útil: um homem desempregado aceita o trabalho de participar na produção de um filme “hard core”. A partir daí, o cara está contratado para realizar os mais inauditos pedidos em uma performance de barbárie. Essa sinopse fiz eu mesmo, com bastante dedução e um provável grau de erro a ser considerado. De qualquer forma, é possível intuir algumas coisas só com essas informações. Digamos primeiro, sem muita cerimônia, que a violência que se orienta ao choque e à abjeção é uma violência que, por curiosa ironia do destino, reprime e censura. Ela incita ao nojo e à aflição, em um cenário de horror próximo do que eu já falei no parágrafo acima. Acontece que o filme tem a particularidade de não ter um psicopata inato, espécie puro-sangue de uma classe exótica, a quem se poderia condenar atrocidades. Temos, ao contrário, um ordinário, um anônimo, alguém que poderia ser qualquer um de nós. Ele não deseja fazer o que faz; ele simplesmente o faz. O que provoca escândalo não é a sua sedução pela violência, mas a desvinculação total com que assume o ato. A violência torna-se, assim, o exercício de fazer violência: podemos fazê-la simplesmente pela capacidade que se tem de produzi-la, pela indiferença com que se é capaz de exercê-la. Tal é essa indiferença que a liberdade do filme, a que permite produzir mais e mais cenas de abjeção, não é, ao contrário do que alegam os censores, antagônica à sua repressão. Nesta zona de indiferença, banaliza-se o ato de produzir violência, mas se intensifica o ato de vê-la. Criam-se mais e mais choques e perturbações, e aflige-se, exaspera-se, até lamenta-se que nunca se chegue a um limite, a um ponto de lucidez, ao término desta monstruosidade...

Enquanto a lucidez leva à liberdade e a censura leva ao medo e ao horror, a indiferença é um caso particular em que a liberdade e a repressão, a lucidez e o medo, a reflexão e o choque, a testemunha e a vítima, se misturam, se equivalem, por fim se anulam. Ela é a única das três que não consegue fazer escolhas, que não traça caminhos e que não estabelece seus limites – em suma, ela não conquista uma moral. Nenhum cineasta realmente bom, digno, faz filmes do tipo “ver quem quer”. As coisas são um pouco mais difíceis que isso. Não se mostra o que quiser, mas o que se considera preciso mostrar. Isso não é fazer censura, mas escolhas.

Por outro lado, a violência que “se faz por fazer” combina muito bem com o “vai ver quem quer”. Acredito que seja esta também a questão que a própria censura, à sua maneira, tem. Ela não ataca uma ideologia ou a defesa de uma ilicitude, mas a câimbra da indiferença. Ela se pergunta como pode ser possível fazer e mostrar “isso”. Tenho o sentimento de que esta pergunta é decisiva nos dias de hoje e ela não vai ser resolvida defendendo, na habitual banalidade da Veja e do Globo, a “liberdade de expressão”. Ao contrário, a própria ideia que se tem (e que se vende) da liberdade como inata, abundante, disponível como o ar que respiramos, é que contribui para este cenário. É a produção exacerbada de notícias e atualizações, é o desejo de tudo mostrar e de tudo disponibilizar, é a lógica em retroalimentação do relevante e do sensacional. Ao final, esta liberdade, já eufórica, tornada ela mesma um “evento”, se confunde também com a nossa indiferença. Alguma dúvida que este é o cenário que gera a violência de A Serbian Film? Alguma dúvida que esta é a cultura dos centros culturais e do “incentivo” à produção de arte? E ainda não há de haver espantos: neste mesmo cenário, a censura é tão possível (mesmo que nunca admitida) quanto é possível a lucidez (mesmo que nunca reconhecida). Só que, feitas para permanecer, elas não parecem sobreviver onde só há o esporádico, o casual, o repentino, também o novo ou o diferente – desde que tenham vida curta. Não é no culto à indiferença que a cultura, assim como a liberdade, vai se fortalecer.

4. O espaço à cultura

À procura de um antídoto, cito essa frase precisa de Pedro Costa: “o papel das cinematecas não é ver, é rever”. Deveria, então, cruzando rapidamente uma discussão tão ampla e turbulenta, falar de algo tão local, tão específico, quanto nossas inofensivas cinematecas? É que esses lugares, hoje tidos como empoeirados, amplos e desoladores, sintomaticamente mal localizados, como se a cidade e a vida cotidiana não soubessem (e nem quisessem) adequá-los muito bem, são os espaços reservados para a cultura. Se incumbidas da função de “rever”, as cinematecas dariam constância à cultura, tornando-a continuamente comprometida na sociedade e perpetuando-a ao longo das gerações. Ali os filmes seriam vistos, revistos, revistos mais uma vez, até suas exibições tornarem-se completamente naturais. Para as cinematecas, não é preciso de justificativa ou de apelo para se exibir filmes. É somente ali que a cultura é lembrada, vivida, desprendida do que é mais tacanho e alheio a ela (a grana, os lucro, bem como as antigas e hoje já tão ridículas censuras). Ali ela está bem a nossa frente, luminosa e evidente, posta à prova da sociedade, tomando parte do que é mais profundo em nossas vidas.

Nenhuma cultura, à exceção de uma industrializada, pode se manter depositando toda a sua atenção na produção, no agora (palavra das mais instáveis). Um corte abrupto demais com o passado retira os alicerces do presente que passa a se sustentar somente através de incentivos provisórios e artificiais. Nesse sentido, os interesses de “fazer cultura” são tão oportunos quanto os de uma censura. Mais até do que “oportunismo” (palavra feia, acusatória demais), ambas as coisas estão intimamente interligadas. É uma mesma visão de mundo, não há como pensar diferente, em que a arte está sempre posta à margem – daí a natural reação de uns pela mendicância, de outros pela repressão. É evidente que as nossas cinematecas não têm nenhuma força neste contexto. Elas não servem para sediar os desfiles das vedetes pelos festivais, nem oferecer servilmente “justificativas” a concursos, tampouco para se curvar diante destes banners enormes cheios de palavrinhas que parecem compor um código secreto, a senha do cofre, o acesso mágico à terra da cultura. Elas não se adéquam ao “fazer cultura”. Subjugadas como primas pobres dos “centros culturais”, elas tentam, erroneamente, imitá-los. Procurando diversificar sua grelha de programação para além da limitação de seus acervos, achando que, sabe-se lá como, vão gerar algum tipo de atrativo ou frisson, apelam até mesmo a projeções em DVD! Isso nada mais é do que uma atroz inversão do que deveria ser a ordem natural: um espaço da divulgação pode se contentar a um DVD; um espaço de preservação (o que inclui a importantíssima preservação de exibir), jamais. É por isso que, não sem razão, esses espaços sejam infelizmente preteridos e até esquecidos. Esta situação, tão pouco comentada, tão pouca declarada, sem dúvidas porque não é algo a ser “noticiado”, é uma forma branda e mais cínica de censura.

João Gabriel Paixão


 Agosto de 2011