no escuro do cinema, parte 2
A Árvore da Vida, Terrence Malick, EUA, 2011

Malick, com a câmera à altura de Deus, filma a luz da criação. É uma questão de fé acreditar que tal pretensão é realizada. Fé em duas ideias bastante próximas: Deus e autoria. O cineasta, claramente, tanto quanto o sol que com enorme consternação emoldura os rostos expressivamente pesarosos dos personagens, acredita que sim. Que está à altura de Deus. Que é o autor do mundo. Não há problemas nisso, a rigor. Kubrick, outro homem que não fazia filmes, mas projetos de vida, certamente pensava o mesmo. A diferença é que o Deus de Kubrick era uma grande máquina simétrica, asséptica e branca. O de Malick, a figura que supostamente se deveria imaginar durante a audição de um disco triplo da Enia.

De qualquer forma, atacar A Árvore da Vida pelo possível caráter brega e ultra new age de suas imagens é demasiado fácil. Tanto quanto propagar a beleza por meio da já citada recorrência de planos em que o sol aparece ao fundo (lembrar dos comerciais de banco: “elegantes”, ensolarados e nauseantes). Deixemos de lado esta linha de pensamento, portanto.

O que faz deste filme um objeto errático e, em muitos momentos, no limite do patético é o tom quixotesco de sua proposta. Afinal, como alguém poderia acreditar ser possível filmar Deus (mesmo que existisse um)? Ou então: como levar a sério a tentativa de se corrigir um pequeno erro da criação divina – o fato de que enquanto ela acontecia, não havia ser humano para testemunhá-la -, algo que Malick deixa claro querer fazer já no primeiro segundo de filme, ao abri-lo com o versículo de Jó. Da série de imagens que se seguem após o cineasta abandonar a Terra e ir para o céu, só se vê o desespero. Segue-se tentativa atrás da outra em apreender as manifestações eleitas como divinas: Big Bang, o magma em formação, a ameba, a correnteza. Tudo isso acompanhado da música que insiste em nos dizer que diante de nossos olhos estão os mais belos peixes, em forma de vagina e de pênis, respectivamente, ou a mais impressionante cachoeira já vista. Mas, de divino aí há muito pouco. O que se vê é bastante ostentação, uma vez que mesmo o microorganismo é filmado com a pomposidade e solenidade de um desfile militar da antiga União Soviética. Nada é pequeno e singelo para o cineasta. O Deus de Malick é um carro alegórico.

É difícil se sentir iluminado pela ostentação. A ostentação é opressora e quase sempre construída em torno de uma falsidade. No entanto, a grande questão sobre A Árvore da Vida é que, sendo um projeto quixotesco, em algum momento ou outro, nossa empatia será conquistada. De volta à Terra, mostrando pessoas, a beleza que deveria estar nas composições luminosas sub-merhigianas, finalmente aparece. Embora a câmera não deixe de fixar um olho em Deus (em contra-plongée, parece se colocar de joelhos, em postura de quem roga aos céus), a maior parte da atenção do diretor está no Homem: os pequenos gestos de omissão da personagem de Jessica Chastain, diante do comportamento opressivo do chefe de família, interpretado por Brad Pitt, mostram muito mais sobre o sentido da vida – ou, ao menos, de uma vida – do que as mil e uma luzes de espetáculo, desta vez “artístico”, e não do entretenimento, brilhando ao longo da obra.

É claro que quando Malick precisa ir ao céu mais outra vez, agora literalmente, a tolice do empreendimento do cineasta vem à tona novamente. Não há qualquer verdade celestial na sequência dos mortos caminhando na praia, porque é impossível filmar a verdade celestial. Ainda mais por meio de simbologias: a máscara de teatro flutuando sob as ondas é só uma máscara de teatro flutuando sob as ondas, nada além. Malick, definitivamente, se mostra bem mais perto do Clouzot de L'enfer, que pensava poder captar a loucura utilizando filtros fotográficos coloridos, do que de Deus. Esta proximidade, aliás, diz tudo sobre A Árvore da Vida.

Para se filmar algo, é preciso ir até a matéria – seja qual for sua composição – de forma direta, sem máscaras entre a câmera e o olho. A luz precisa nos atingir apenas pelas costas, não por cima ou pela frente, nos ofuscando a vista e nos distraindo daquilo que realmente interessa: o ser humano.

Wellington Sari


 Setembro de 2011