TIO BOONMEE, QUE PODE RECORDAR SUAS
VIDAS PASSADAS

Apichatpong Weerasethakul, Lung Boonmee raluek Chat, Reino Unido/Tailândia/Alemanha/França/
Espanha, 2010


São sobretudo os meios-tons que predominam nos planos de Tio Boonmee. A imagem aqui às vezes é quase cinza. É nessa passagem entre a cor e o seu desbotamento completo, entre a sombra e a luz, a noite e o dia, que se passam os fenômenos que o filme pretende capturar (para os que ainda não sabem, é um filme fantástico). Ou pelo menos é aí que eles se tornam visíveis. O filme começa com uma cena em pleno crepúsculo. Uma vaca amarrada em uma árvore se solta e foge floresta adentro, obstinada, atraída por algo, um tipo de força talvez, que ignoramos. Acontece aí a primeira aparição dentre muitas que virão no filme.

Tio Boonmee, o personagem do título, é um velho senhor que está morrendo e que conta seus últimos dias de vida. O filme é também sobre essa passagem da vida à morte, e sobre os encontros com certas figuras do além que precedem esta passagem. Apichatpong trabalha a partir de uma organização geométrica do espaço narrativo. É isso que abre os espaços e lacunas (necessárias, óbvias, deflagradoras) a serem preenchidos pela face invisível do mundo – as aparições. Como nos filmes fantásticos de caráter mitológico essencial, é um cinema onde as coisas (os objetos, as imagens) existem apenas pelo mero sentido de presença. Um filme que de certa maneira tematiza a presença.

Apichatpong é, então, um verdadeiro cineasta do espaço. Mas isso não apenas no sentido de uma geometria da narrativa. O que há de incrível nos seus planos (todos sabem) é principalmente a capacidade de imprimir densidade e a espessura de um mundo através da câmera – é isso que é “filmar bem”, ou “filmar bem uma floresta”, afinal. Qual o resultado disso? É uma coisa que realmente conta e ganha um sentido, num filme como Tio Boomnee, o mero entrar e sair do quadro, aparecer e desaparecer da imagem (mesmo que isso dure apenas alguns segundos, como nos planos de caminhada pela mata). É um filme sobre aparições do além, mas no qual os próprios personagens parecem submetidos o tempo todo ao mesmo risco (desaparecer, reaparecer, se duplicar) diante do espectador.

Existe um clímax em Tio Boomnee. É quando os personagens entram floresta adentro e depois descem pelas pedras, penetrando numa gruta. A câmera aqui é mais nervosa do que no resto do filme – alguns planos de câmera na mão, tateando o espaço, procurando aqueles personagens que podem desaparecer a qualquer minuto. Então eles chegam, e a câmera filma um plano iluminado (uma luz branca, forte, trêmula, artificial) de uma poça subterrânea de água límpida, onde é possível ver vários peixes nadando. O plano deixa a sensação de um verdadeiro milagre narrativo. A dramaturgia do adensamento (a partir de uma mera paisagem natural) atingiu o seu ponto máximo. De agora em diante, no filme, iremos vibrar (praticamente) com imagens banais – uma música num bar, uma situação de quarto de hotel (como naquela cena dos velhinhos dançando no final de Síndromes e um Século).

Tio Boomnee é um filme de sublimação das operações fundamentais do cinema.

Calac Noguera


 Maio de 2010