TETRO
Francis Ford Coppola, EUA/Espanha/Itália/Argentina, 2009

You can’t look at the light.
Don’t look at the light, Bennie.

Não são os contrastes e meios-tons elegantes da película que banham as imagens em preto e branco de Tetro, mas um cinza árido, resultado da captação em digital. Prova, em primeiro lugar, de que o uso do preto e branco para Coppola aqui de forma alguma se reduz à mera perfumaria. Mas ele tampouco é usado como um recurso de linguagem óbvio, por exemplo como metáfora sobre a condição dos personagens. A importância do preto e branco para o filme é vital e se liga à própria importância da luz, que vai muito além do leitmotiv narrativo representado pela lâmpada para qual se deve evitar o olhar a todo custo, sob pena desta causar cegueira e destruição (“Não olhe para a luz, Bennie”, diz Tetro). A luz aqui é a própria matéria do filme. Não à maneira de um simples teatrinho de sombras, mas como uma superfície, um corpo onde se gravam as imagens do filme, que irão do cinza batido inicial à opacidade completa.

Apesar de realizar um conto familiar de tons expressionistas, Coppola não recorre aqui ao dispositivo e ao ponto-de-vista como capas que filtrem e protejam o material sob o teto da percepção. O olhar do filme não se filia nem a Bennie nem a Tetro. A ficção se livra de seus estratagemas para se tornar apenas aquilo que é: uma aventura ambiciosa e delirante, o roteiro poluído e pesado, cheio de flashbacks, passagens alegóricas e uma fauna extensa de personagens. As imagens são expostas à vulnerabilidade da ficção – expostas, primeiro, ao seu próprio mau gosto, mas também ao mau entendimento e à não-identificação do público. Para Coppola, vale menos a idéia e mais o trabalho com o próprio material cinematográfico: sua carne/fio condutor (a luz) e seu motor ficcional (o esclarecimento, que se encontra amarrado na fronteira da opacidade).

Vem em parte daí o percurso cego que se realiza com o filme. Tateia-se mais do que propriamente se contempla a narrativa, o drama familiar cinzento e figuras burlescas em meio a enormes vãos de luz e escuridão. Mas não há trompe l’oeils aqui, apenas um movimento contínuo rumo a uma opacidade desarmante. A dramaturgia de Tetro é como um poço no qual é preciso afundar-se até o fim não para ver a luz, mas, justamente, sua opacidade – seus contornos, formas, cores; apenas isso. O que dizer da cena em que Tetro revela a Bennie que é seu próprio pai? Uma cena dura, uma imagem destacada do resto (dos fantasmas aterrorizantes do resto), uma opacidade contra a qual é impossível lutar.

Voltando ao início, há apenas quatro cores em Tetro: preto, branco, cinza e colorido (que talvez pudesse ser lido apenas como vermelho). É através desta paleta rudimentar que Coppola recupera a palpabilidade da imagem. Tudo é palpável em Tetro: o segredo familiar, todos os personagens coadjuvantes burlescos, a própria luz – que invariavelmente causará cegueira ou o mergulho na escuridão. É preciso conviver com essas formas como numa espécie de teatro de imagens, aceitá-las em sua literalidade caricatural e simbólica.

Os flashbacks e cenas em colorido que apresentam encenações de uma ópera são menos faróis elucidadores de uma consciência do que meros entroncamentos narrativos – é a narrativa também como matéria que está em jogo. Como Lynch, Coppola vê a ficção como matéria. É o trabalho do cineasta se debruçar frontalmente sobre os materiais cinematográficos: texturas, cores, luz, profundidade de campo, movimentação de câmera. É unicamente por isso que os filmes de Lynch resistem às associações tolas que se costuma fazer entre seus filmes e os fluxos de consciência. Também é inútil recorrer à psicanálise em Tetro: a luz não é uma fobia identificável ou a porta direta para um trauma passado. As cenas em colorido, apesar de infundirem na narrativa um certo teor sexual banido da parte “cinza”, de modo algum empurram-na em direção à visão do complexo edipiano. A ficção visceral é aquela que atravessa todas as idéias, que resiste – para que no fim possam sobrar apenas suas imagens e formas.

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Impressiona como mesmo partilhando de mil atributos do estereótipo de “filme independente” regurgitado pelo nosso jornalismo cultural (“baixo-orçamento”, locações na Argentina, fotografia em preto e branco e presença de um dos atores cools do momento – Vincent Gallo), o filme consiga ainda assim rechaçar este estereótipo violentamente – é a ficção que resiste à categorização. A crítica também fará a sua parte nesta cruzada esvaziadora: uns vão elogiar a capacidade inventiva do roteiro enquanto outros vão considerá-lo gordo, inchado, eventualmente confuso. Francamente, pouco importa se o roteiro é ágil ou obeso. Importa a relação que um cineasta estabelece com os seus materiais, a vontade desesperada com que Coppola filma seu teatro de imagens. E ele filmará até o fim, porque é um cineasta de verdade (não é autor, artista ou coisa que o valha). É isso que dá a Tetro, a despeito de sua aparência irregular e feia, um aspecto verdadeiramente sublime: é um roteiro filmado até o fim, inconsequentemente até o fim.

Calac Nogueira


Dezembro de 2010