O MISTÉRIO DA TELA
Sobre À Prova de Morte e as estratégias de Tarantino

Foi em Kill Bill que Tarantino mergulhou na mítica fonte de ícones que o universo dos seus filmes anteriores já evocava, um filme que redefiniu os rumos de sua carreira e marcou um coming back festivo, mas exagerado na decoração. Era o retorno do enfant terrible sempre associado ao estereótipo de Tarantino, então fortalecido por um filme aberrante e voraz que entrou para dentro de si próprio, isto é, do mundo do cinema e da provação de todos os seus efeitos possíveis. Hoje, alguns anos mais tarde, Bastardos Inglórios nos propõe menos um filme-dentro-do-cinema e mais um filme-dentro-do-próprio-filme: cheio de atalhos, entroncamentos e digressões, como em um jogo do qual os personagens sabem que participam, porém não conseguem se comandar. Existe ainda outro filme entre estes dois, neste momento já um tanto abandonado e que sequer chegou ao circuito comercial brasileiro. No entanto, ele consegue alcançar a síntese e o objetivo final que parece ter assombrado o cineasta desde Kill Bill. À Prova de Morte, e o projeto do qual é derivado (Grindhouse, feito em parceira com Robert Rodriguez – por sinal, sua parte desta realização, Planeta Terror, chegou por aqui), buscam um retorno ainda maior, ao “começo de tudo”: a tela de cinema. Por lá, passarão a esquizofrenia dos trailers, emoções intensas ou inacessíveis mas sempre fortuitas, a materialidade “invisível” do filme (película) a um só tempo se concretizando e se desfazendo sob nossos olhares imóveis. É uma bela continuação a Kill Bill: do mundo do cinema, não se sai ileso.

Trata-se de um retorno bem sintomático ao ofício que ele vem realizando. Seu trabalho crê que o cinema se fortaleceu de uma espécie de falha, na sugestão equivocada de um olhar, na selvageria de uma arte sem memória... lá na tela. É nas periferias da arte que o cinema encontrou, não se pode dizer sua “vocação”, mas um desprendimento da dramaticidade e a vitória de um novo e transformado espetáculo. Assim, o objetivo final do trabalho de Tarantino não é a cópia de ícones e formas do exploitation cinema, western spaghetti e outros tantos que podem atender por “flicks”, no que eles têm de pitoresco e exótico. Não se trata de um parque de diversões temático. Seria abjeto regressar a estes filmes simplesmente para praticar um conhecimento adquirido sob a chancela Tarantino. Esta é uma lógica elitista e ahistórica, que ignora a atualidade dos filmes, ou seja, aquilo que estava presente e era consumido na época de suas realizações e que ainda hoje se mantém intacto. Ignorar esta atualidade é interditar, mesmo denegrir, o seu espetáculo. O que Tarantino deseja, e particularmente investiga com À Prova de Morte, é defender e dar prosseguimento a este desprendimento. É este ato que vai demarcar o seu papel genealógico, traduzido na exigência de que os filmes são feitos para serem projetados, ao invés de mumificados, e é na tela que se concretiza esta transformação.

É, de maneira análoga, aquilo que Luiz Carlos Oliveira Jr., a partir de Crônicas de Anna Magdalena Bach, define: “talvez a verdadeira modernidade seja a eterna capacidade de recomeçar, de recuperar o impulso original de uma arte em qualquer época da sua história”. Faço a devida ressalva que o atributo “original” é uma destas qualidades que Tarantino mais apedrejaria, visto que o cinema do qual ele se filia ou, pelo menos, que ele tenta reencontrar, é um cinema de escombros e de bastardos, de desgaste e de sujeira, do que vem após “o belo”, da feiúra. Tem-se, de qualquer forma, um “impulso”, e é este que irá transformar a idéia de arte. São nos deslizes de um roteiro feitos sem know how hollywoodiano, nas hesitantes interpretações de aspirantes, em tudo aquilo de um filme que remete a um padrão (superior? “original”?), mas que não o desenvolve. É esta defasagem que possibilita o vislumbre de uma nova liberdade dos gêneros e do espetáculo, em uma outra compreensão de tempo e uma nova qualidade da palavra, e é com isto que À Prova de Morte se destaca e onde quer garantir a perpetuação de uma tradição. Aliás, não poderíamos usar a mesma frase para falar de Straub/Hulliet?

É como genealogista que ele não vê uma narrativa, mas somente a construção – e, como tal, sempre arbitrária – de elementos dispersos. A brutalidade com que são introduzidas informações e personagens aos enredos de Tarantino é sempre um dos seus pontos fortes. Por exemplo: na primeira cena de Bastardos Inglórios, ainda antes de Hans Landa (Christoph Waltz) entrar na casa do camponês, Tarantino instala uma tensão sem qualquer preparativo, criando um clima artificial estimulado não pelos personagens, mas pelas caricaturas que provêm deles, e ainda pela amplitude do faroeste, os elementos cenográficos provenientes de um imaginário que não confundimos com verossimilhança, e até mesmo por notas dedilhadas de um violão que nos alerta do perigo. Todos os elementos da cena são facilmente assimilados, ao invés de serem apresentados em uma cadência, como uma partitura em crescendo, que comporia o ritmo do filme. É assim que o cineasta consegue esvaziar a dramaticidade e continuar sua análise na memória da dramaturgia. Cada cena passa a ser autosuficiente, o que faz Tarantino acreditar que não importa tanto a ordem de dispô-las – é aí que reside o diferencial de À Prova de Morte.

Nos demais filmes, a preferência por narrativas tortuosas exigia sempre muito contorcionismo, muita carta na manga, resultando menos em uma projeção para fora do filme do que promoção um novo espetáculo. No entanto, À Prova de Morte é um filme rigorosamente linear, em que a brutalidade destes elementos dispersos são ressaltados justamente como “tropeços”. As figuras de estilo (papos furados, digressões, discotecagens) estão, assim, inscritas em algo que permanece imperturbável e que não pode ser manipulado: o tempo. Ou melhor, a tela. É ela que nos faz sentir o próprio tempo de apreciação que temos sobre à obra, que nos pressiona a mergulhar em seqüências longas e vagas, que parecem não avançar, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, a trama avança sem parar, indelevelmente, a uma violência injustificada e irreconciliável. As pistas falsas, a hipertrofia temporal, a falta de causalidade não se tratam de uma questão de estilo – são fatores inevitáveis, “problemas crônicos” dessa projeção que segue em moto-contínuo (as brincadeirinhas com a imagem, emulando desgastes e remendos da película, enfatizam este jogo).

Uma sensação de continuidade irrefreável se concretiza também na construção narrativa que é dividida, ou melhor, fundida em duas partes. Primeira parte: um grupo de amigas se reencontra com a vinda de uma à cidade. Elas saem para comemorar, enquanto são perseguidas por um muscle car com uma caveira desenhada sobre o capô. Com muita música e birita, as garotas e o piloto do carro aterrorizante (Kurt Russel) se vêem no mesmo bar; trocam olhares; trocam palavras; se aproximam. Tudo se desenvolve em uma seqüência bem longa, cheia de arestas incompletas, situações e personagens que se multiplicam e se dispersam. Somente após a saída do bar que a intenção de um e o destino das outras estarão esclarecidos, em um clímax curto, súbito, fora da proporção com o seu preparativo. É uma estrutura que elimina o enaltecimento dramático, se focando no que os acontecimentos têm de banais, de metonímicos e particularmente no que eles têm de passageiros. As cenas se sucedem umas às outras em uma progressão implacável, linear mas nunca crescente, como o recito de uma tragédia que não se atém a nada, nos deixando distanciados e incapazes de alterarmos o seu andamento. É assim que chegaremos na segunda parte com a suspeita de que, com a mesma premissa (garotas se divertem, o piloto as persegue), alcançaremos a mesma conclusão.

Quebrando expectativas como é objetivo de sua função, e nos pressionando à contemplação de um imenso e em crescente “FIM” carimbado sob a tela, Tarantino enfatiza o papel do espectador como alguém traído, inútil, passivo, esvaziado de qualquer tendência piedosa. Com a tela, o respeito é outro... Isso porque o cinema não é uma casa – que dirá uma catedral! Não se trata de receber domicílio e acolho para escaparmos do mal. O que mais me irrita em filmes metalingüísticos é a ostentação desta domesticação, o espetáculo pelo espetáculo. Em À Prova de Morte, ao contrário, quem realiza o espetáculo são as moças. Tarantino, por sua vez, está do outro lado da tela, como a Shosanna de Bastardos Inglórios – descobre-se, assim, que o trabalho do diretor pode, de alguma forma, igualar-se ao do projecionista. Sejam exibicionistas (primeira parte) ou imprudentes (segunda), são elas que vangloriam seus corpos e que encenam os próprios gestos, e é desse comportamento caricato e infantil, bem como da violência estúpida que o sucede, que Tarantino extrai uma fisicalidade inesperada e um tom analítico que torna tudo ironicamente “peça de cinema”. É na arte de capturar o supérfluo que o cineasta nos afasta da espetacularização, deslegitima o clichê e extrai dele o puro pastiche. Desnecessário dizer que Kurt Russel – este elo perdido de um mundo profundo e esquecido – será ridicularizado ao máximo. Vê-lo desse jeito não é somente uma anedota, mas um momento simbólico, mesmo profético...

Talvez seja por isso que seus filmes sejam tão digressivos, para buscar um conjunto heterogêneo de pequenas cenas de filmes diversos que continham um grau de fascinação e um lampejo de veracidade dos quais Tarantino não soube se desvencilhar. Ainda assim, esse conjunto de cenas não deve ser uma vitrine ou um portfólio de situações reapropriadas apresentados aleatoriamente. É com À Prova de Morte que o cineasta soube filiar a “cena” ao conjunto. Uma vez filiada, no entanto, ela realiza uma fissura, uma brecha na narrativa. Como encarar tanto pastiche e um nível tal de violência, ou ainda, todas as vezes que Russel está em cena, senão como um cataclismo narrativo, uma falha de projeção, uma cicatriz sob a tela? É neste “tudo pode acontecer”, nas fendas do espetáculo, na falta de “arte” que então teremos uma nova história do cinema e do mundo.


João Gabriel Paixão