A RELIGIOSA PORTUGUESA
Eugène Green, Portugal, 2009

Apaixonado pela cultura barroca, era natural que Eugène Green um dia fosse parar em Portugal. O que espanta em A Religiosa Portuguesa, todavia, é que ele parece ter encontrado em Portugal não só o século XVII, mas também o futuro – do cinema, inclusive (basta pensar que lá é filmada hoje uma boa parte dos filmes que ainda se podem chamar de “modernos”: os de Oliveira, Pedro Costa, Miguel Gomes, João Pedro Rodrigues... e agora Eugène Green). Na ponta da Europa e na proa das grandes navegações, portanto geográfica e historicamente situado na extremidade entre o velho e o novo mundo, Portugal é um ponto estratégico para se ter uma visão ampla do Ocidente (nada que Manoel de Oliveira não nos venha mostrando insistentemente). Green encontrou em Portugal um país que convive ativamente com seu passado histórico e mitológico, a ponto de confundi-los ao presente. O mito do Encoberto, por exemplo, encarnado na figura do rei D. Sebastião (cf. Oliveira, O Quinto Império – Ontem como Hoje), ressurge em A Religiosa Portuguesa como se fosse um elemento corriqueiro diluído na paisagem urbana de Lisboa: primeiro numa pixação que aparece logo no início do filme, pedindo a volta do rei desaparecido; depois como um rapaz que Julie (Leonor Baldaque) reconhece como D. Sebastião reencarnado.

Lisboa é, por natureza, um perfeito cenário greeniano: cidade em que aparições mágicas ganham ar de trivialidade, em que o Barroco parece ainda tão vivo quanto há cinco séculos, em que o tempo é um acúmulo de tempos. Lugar ideal para Green concretizar uma de suas metas principais desde sempre: transcender a ficção no mito. Curiosamente, esse caminho o leva a uma relação de intimidade com a realidade física do espaço. É de fato incrível o modo como ele nos coloca dentro de Lisboa. Nunca me havia sentido tão próximo de uma cidade pelo simples fato de estar assistindo a um filme que nela se passa. O clima e a sensação tangível das locações só é tão presente no filme porque Green captou, antes de tudo, o espírito de cada uma delas. À semelhança de Straub, ele é um cineasta que se instrui primeiramente com tudo o que vem antes do cinema: a escultura, a pintura, a poesia, o teatro, a música... Assim ele aprende a não apreciar apenas o lado “cinematográfico” das coisas, abordando-as de um ponto de vista enriquecido pela consciência de que o cinema não é o único meio disponível para captá-las, mas um dentre outros. Somente em posse dessa consciência um cineasta pode e poderá ainda procurar as coisas não segundo o que a lente utilizada ou o quadro escolhido determinam, mas segundo o que elas são. A evidência das coisas emana delas mesmas.

A Religiosa Portuguesa começa com a chegada de Julie a Lisboa. Ela é uma jovem atriz francesa que está na cidade para rodar um filme baseado num texto do século XVII, as Cartas Portuguesas de Guilleragues, a história de uma freira que se apaixona por um oficial francês (Adrien Michaux, que já faz parte da “trupe” de Green). Isso é explicado por ela ao recepcionista do hotel onde está a fazer o check in, a princípio em francês e inglês, mas depois num português fluente (aprendido com a mãe, que é de Portugal), num engraçado diálogo multilíngue. O diretor do filme dentro do filme é interpretado pelo próprio Eugène Green, com o nome bem humorado de Denis Verde. Em todas as cenas em que aparece, Green se mostra uma presença leve, de um humor saudável e inteligente.

O filme vai mostrando uma série de encontros de Julie com outras pessoas, desde um menino órfão até um suicida de meia-idade. Perto do hotel, que fica na parte alta do centro de Lisboa, há uma capela barroca onde Julie observa, por diversas ocasiões, uma jovem freira que lá se põe a rezar todas as noites. Um dos pontos máximos do filme é a cena em que ela e a freira têm um longo diálogo encenado naquele campo-contracampo frontal típico de Green. Mais que um espelhamento, a cena cria uma fusão entre as duas mulheres. A conversa é recheada de frases marcantes, das quais algumas em especial dizem respeito ao centro e à origem do próprio cinema de Eugène Green. Por exemplo: Julie diz que sua tarefa, enquanto artista, é “transmitir a verdade através de coisas irreais”, ao que a freira acrescenta: “Como Deus, que transmite a verdade através do mundo”. Julie e a freira buscam a mesma coisa: elevar a realidade sensória a uma esfera superior (onde se encontra a Verdade, ou o Belo, ou “simplesmente” Deus). O mundo sensível é a ilusão de que dispõem para transmitir uma verdade que se forma no espírito, e que de outro modo não teria como ser exteriorizada. Esse diálogo de Julie com a freira constitui um momento raro em que a arte já traz em si a teoria da arte, a beleza o segredo da beleza.

A dramaturgia de Eugène Green chama a atenção por uma série de elementos, dentre eles a qualidade peculiar das falas dos atores – dicção pausada, resgate de expressões arcaicas, fonética barroca. A interpretação de Leonor Baldaque em A Religiosa Portuguesa, como a de Christelle Prot em Le Monde Vivant e Les Signes, consiste em depurar a expressão de tal modo que, a cada cena, ela seja o acesso sensível a uma única emoção. É o contrário da representação naturalista, tanto a tradicional – que, em linhas grosseiras, define-se por uma transparência espontânea do ator, que interpretaria “instintivamente” – quanto a moderna – onde o ator é quase um personagem, a narrativa é quase uma ficção, e a atuação se molda pela preservação da confusão de sentidos e de sentimentos que caracteriza um determinado momento na vida de uma pessoa. As emoções humanas possuem contornos nublados, as fronteiras que estabelecem entre si costumam ser instáveis; somente com muita dificuldade – e sob o sacrifício de alguma condição natural da existência – se consegue separar uma da outra. O ator “natural” seria, nessa lógica, aquele que imprime no personagem a confusão/oscilação intrínseca do ser humano; o que se teria não é a forma acabada de uma emoção, mas um agregado inextricável de emoções ou de iminências delas – quando não, nos casos extremos, um turbilhão. A dramaturgia de Green, entretanto, vai no sentido oposto a essa concepção de “natural”; ele escolhe justamente o caminho que a muitos pareceria impossível: não exprimir senão uma emoção por plano. Essa é a premissa da atuação de Baldaque em A Religiosa Portuguesa: seu rosto não se abre à passagem de um feixe de emoções que se revezam e se misturam, e que constituem um conjunto agitado de forças das quais não se sabe ao certo qual a predominante. Em cada close frontal, ela precisa se livrar de todo o excesso, de tudo que não pertence à forma buscada. Green reconhece aí o único caminho adequado para atingir a emoção em si, apresentada inteira e clara.

Uma das cenas que mostram as filmagens do filme dentro do filme traz a mais reveladora postura de Green como cineasta. A cena ocorre já quase no final. O diretor diz ação. Estamos vendo a equipe de filmagem, e não Julie. A câmera faz uma lenta panorâmica. Não há um corte para a atriz se movimentando, mas apreendemos o movimento dela pelo movimento da câmera. Green nos revela, pelo avesso, que sua câmera apenas segue o objeto vivo que está à sua frente. O movimento da atriz que para nós está fora de quadro implica o movimento da câmera, e não o contrário. A mise en scène, no cinema, é a “linguagem” criada para inverter o caminho das outras artes e captar o movimento do mundo por meio de sua evidência mesma, provar “o movimento ao andar, a existência ao respirar” (Rivette). “É o cinema, e tão somente o cinema, que faz justiça a essa interpretação materialista do universo” (Panofsky). Ao fim dessa cena, Julie afirma: “Olhando para o mar, compreendi o que eu estava dizendo”. A lógica é a mesma: a evidência sensível ensina ao espírito o significado do mundo. Fecha-se um circuito que em nada contradiz as idéias expostas no diálogo entre Julie e a religiosa na capela. Uma coisa complementa a outra.

Iluminada por tudo que viveu em Lisboa e pela conversa que teve com a freira, Julie sente sua vida mudando. Ela decide adotar Vasco, o menino órfão, e levá-lo consigo para Paris, onde ele aprenderá o francês e frequentará a escola. Por ora, tudo que Julie ensina ao menino é a primeira palavra na nova língua: “maman”. Vasco, portanto, renasce a partir do momento em que trava o primeiro contato com uma nova língua (para Green, o homem nasceu junto com a palavra), que lhe será mais uma língua materna. Ele é o fruto da fusão amorosa de Julie com Lisboa, assim como A Religiosa Portuguesa é o fruto da fusão amorosa de Eugène Green com Portugal.

Luiz Carlos Oliveira Jr.