SEXO, QUIABO E MANTEIGA COM SAL
Mahamat Saleh Haroun, Sexe, gombo & beurre salé, França, 2008

Sobre a paixão dos filmes possíveis

Entre alguns dos prazeres de ver um filme como Sexo, Quiabo e Manteiga Com Sal é o deslumbramento com a simplicidade bruta da encenação. A utilização precisa dos limites do quadro; a maneira como aquilo que está além do recorte visível vem a se manifestar na superfície da tela (especialmente o uso do som em off); a escolha mais racional dos objetos dispostos em cena, de modo a estar presente exclusivamente o essencial para a densidade espacial; isso tudo parece referente a um domínio presente, hoje em dia, somente aos autores mais arrojados, e a eficiência desta encenação seria catalogada na ousadia e irreverência de suas visões. No entanto, o que se aprende com este filme de Mahamat Saleh Haroun é que esta economia de recursos pode ter se derivado antes de uma inteligência sobre as condições materiais da produção e o meio de distribuição a qual o projeto estará submetido do que qualquer “genialidade” de outro mundo. Nesse sentido que Sexo... se torna um autêntico filme possível.

E como nos apaixonamos pelos filmes possíveis! O filme possível é aquele que transmite uma total transparência de todas as suas intenções (as retóricas, os gestos estéticos destas intenções); que se vale muitas vezes dos recursos mais manjados, que, quando presentes, denunciam o valor original de suas utilizações; que não precisa de um bom elenco, extraindo o máximo do embate corpo-a-corpo entre o ator e o personagem; que nunca exalta a verossimilhança, se estabelecendo na brecha entre a tenacidade do real e a magia da ficção. Isso está presente no trabalho de Haroun, sem que exista qualquer indício de uma racionalidade exagerada que esteja abarcando forçosamente todo este conjunto. Ora, o filme possível só o é à medida que estão equilibradas as ambições (a parte mais racional) e as tendências mais naturais e sensíveis do diretor. O que sentimos é estar bem perto do trabalho prático do cineasta, colados à série de restrições de ordem física e material das filmagens, inscritos nós mesmos na repercussão que o trabalho ficcional gera na matéria. Sexo..., como dissemos, não precisa de bons atores, pois ele se nutre de suas limitações gestuais. Seus personagens estão em um patamar além da caricatura social, adentrando em um estado irremediável de automatismo, não oferecendo nenhum tipo de justificativa para conter suas ações. Isso leva a uma relação imediata entre aquilo que o personagem faz e aquilo que ele é, desembaraçando o filme de acessórios descritivos ou de qualquer má consciência social, tornando-o muito direto em seus comentários sociais.

Esse blá-blá-blá todo foi – e espero que ainda seja – uma das forças motrizes da cinefilia. Posto que o filme possível está diluído dentro de incontáveis projetos de mesmo porte e temática, e ainda é invisível ao olhar, por nunca sair das expectativas do que seria o mais puramente “convencional”, isso torna a atitude de singularizá-lo ao mesmo tempo mais ingrata e peremptória. Afinal de contas, o que é Sexo, Quiabo e Manteiga Com Sal? Um filme encomendado por algum canal de TV francesa, focado no cotidiano de uma família de origem africana, e de um humor agridoce que se vale das mais variadas circunstâncias (conflito entre gerações, entre sexos, entre etnias...). Um projeto todo empacotado, e nada dentro do pacote quer esconder isso. Descobriríamos, então, que cineastas da frontalidade cômica, dessa simplicidade quase virtual da cenografia, da base romanesca mais declarada – como Manoel de Oliveira, cujo Singularidades de uma Rapariga Loura comprova novamente a sua grandeza –, no fundo, querem reencontrar justamente o rigor invisível destes projetos muito longe de qualquer verniz e glamour. Oliveira e Haroun: “primos” não muito distantes, mas que a espessa atmosfera midiática nos fez não reconhecer. Se também admito a perspicácia, o refinamento e a precisão inigualáveis de Oliveira, não me nego quanto a um mesmo maravilhamento que os dois filmes, em intensidades distintas, provocam. E para ficar mais claro ainda: Sexo... está muito, muito longe de qualquer grande filme. Ele nos ataca com a agressividade dos filmes ruins, e jamais contempla algo além da inofensiva comédia familiar. Mas ele se mostra possível – algo que ainda nos falta elogiar.


João Gabriel Paixão