PRECIOSA
Lee Daniels, Precious, EUA, 2009

É perfeitamente possível imaginar um texto falando mal pelos cotovelos de Preciosa. Eu mesmo faria um fácil. Na sugestão do trailer, no pedigree do projeto (dinheiro de Oprah Winfrey; interpretações de Mariah Carey e Lenny Kravitz), na trama (adolescente negra, gorda e pobre, estuprada pelo pai e que apanha da mãe, sobrevive por devaneios angelicais e tenta progredir em sua educação escolar), temos informações mais do que suficientes para nem passar pela porta do cinema. E já a partir desses indícios, o leitor mais esperto poderia intuir que os argumentos pautados por aqui seriam algumas expressões como estilização da pobreza, pornografia da violência e toda perturbação de ordem moral que se causa quando a sensibilidade do diretor extrapola o ponto de vista do narrador, congela a ação, e enfatiza detalhes peculiares que supostamente melhor analisam e definem a cena que estávamos apreciando. Esse tipo de atitude está, logicamente, presente em Preciosa: imagens “voláteis”, de tão curtas e desconexas, de uma frigideira cheia de gordura, do vulto de um estupro, da claridade de um delírio. São imagens que instantaneamente descrevem a personagem, descrevem como ela deveria se sentir. O massacre que se impõe à personagem começa nessa soma pragmática (ambiente presente + passado traumático + devaneio de um futuro irrealizável) que resulta na definição concisa de um sentimento abstrato, pessoal e supostamente intransponível. É aí que a cena se congela, já que o narrador se concentra na emoção, em algo que vem antes de uma reação. No fim das contas, a operação formal consiste em eliminar o impulso, a sobrevida, o fôlego, aquilo que move a personagem e, portanto, a mantém viva.

Tudo isso é adequado a Preciosa – poderíamos ainda estender essa exegese para o trabalho de iluminação, de câmera (especialmente os zooms), a elaboração dos diálogos... e continuaríamos acertando. Mas essa facilidade não basta a esse texto. Argumentos fechadinhos e consolidados não bastam. O filme também dá o troco, ao captar um tom interessante com o fato de a personagem-título, Precious, não ser muito reativa e atuante. Surpreendentemente, o diretor Lee Daniels não parece querer sugar a passividade de sua protagonista para nos transmitir algum efeito terrorista. Precious, com sua postura meio apática, suas veleidades tão banais e infantis, enfrenta um mundo de sacrifícios como se nem soubesse que eles existem. O que faz toda a diferença: as “imagens-síntese” estão lá descrevendo a personagem em um pragmatismo grosseiro; a personagem, porém, alheia àquilo que a simboliza, deixa de ser a refém. Isso desafoga o filme de uma complacência ditatorial, entregando uma banalidade com a qual o “drama” não sabe como lidar. Há uma cena em que Precious chega ao ponto de confundir “incesto” com “inseto”, o que exemplifica muito bem a maneira lúdica com a qual, às vezes, diretor e personagem esbarram para lidar com um assunto de tal gravidade. A cena também escapa da ostentação de uma ignorância “graciosa”, porque Lee Daniels não coloca a sua câmera de modo a encarar a protagonista e jogá-la contra a parede. Esse tom de banalidade, até de insolência (sem conotação negativa, se isto for possível), é alcançado quando o diretor depende menos de Precious como seu centro gravitacional e demonstra interesse em transitar nos fragmentos espaciais da cena (uma sala de aula; um apartamento; o leito de hospital rodeado por amigas da paciente e um enfermeiro). Existe um certo estado de alegria em alguns ambientes em que Precious convive, ou ao menos de um clima cotidiano, que acalma o filme de uma urgência propositiva.

O problema (ou, de outro ponto de vista, um preconceito) no gênero do “drama” é o tom solene que qualifica sua narrativa – antes de ser uma argumentação, já é um estágio, um sintoma, uma doença. Existe uma linha tênue que separa uma solenidade que é em si a própria ebulição do material dramático de outra que é simplesmente um verniz caricatural. Preciosa, com seus personagens planos e chantagem sócio-racial, certamente pertence ao segundo grupo, mas, na busca discreta por uma escassez de melancolia, o filme se agüenta por trechos crus, quase anarrativos. A falta de proposição, de “dramaticidade”, é, no caso, um alívio. Parece a única maneira de escapar de gosto novelístico de um Quem quer ser um milionário?, que leva inevitavelmente ao exotismo mais asqueroso. Se virar com os tempos mortos e na espontaneidade dos atores, talvez seja somente isso que se esteja defendendo.

Bem que Lee Daniels poderia ser escalado para um projeto menos “importante”; um filme de ação, por exemplo. Porque, em Preciosa, o que parece atrapalhar é uma ambição dramática até deslocada do estilo do diretor. Essa preferência pela fragmentação espacial, o poder sintético na escolha das imagens, a capacidade de extrair de caricaturas alguns momentos impressionantes de atuação, estariam, quem sabe, melhor colados à efervescência do material e ao tipo de pragmatismo que o espectador de um filme de gênero espera. Essa incursão de Daniels não deve nunca ocorrer, mas é o tipo de devaneio que se tem vendo Preciosa.


João Gabriel Paixão