OS DOIS LADOS DA EMOÇÃO

Quem conhece Johnnie To apenas por Election, Breaking News e Exilados, seus filmes mais vistos no Brasil, vai levar um tremendo choque quando entrar em contato com sua obra do final dos anos 1980, quando realizou dois filmes opostos, mas que mostram de maneira estranha, e às vezes equivocada, sua personalidade rica em características conflitantes.

The Eighth Happiness, de 1988, é um exercício em humor grotesco e corrosivo que raramente dá certo. Desde o início, quando os créditos passam num fundo vermelho com uma versão sintetizada de “Danúbio Azul”, percebemos que existe uma disposição em romper a barreira do patético. A primeira sequência confirma essa disposição escalando um anão para surpreender uma bela corredora num parque fazendo uma autêntica pose exibicionista, abrindo seu roupão e berrando diante do olhar incrédulo da moça: "veja, não sou criança".

Tem mais, Chow Yun Fat aparece como um dandi efeminado que usa batom e cachecol, e se disfarça de professor de arte dramática no primeiro dia de um curso. Se lembrarmos que The Eighth Happiness é de 1988, e que cinco anos depois Johnnie To faria um dos mais talentosos filmes sobre heróis de Hong Kong, o celebrado The Heroic Trio, a curiosidade cresce assustadoramente para ver como o diretor se transformou de um sub-Almodovar oriental em um digno seguidor de Tsui Hark e John Woo.

Mas falar em Almodovar é dar só a ponta do humor à Hong Kong. Não há referências ocidentais para esse tipo de humor, a não ser que consideremos Jerry Lewis ou mesmo o mais histriônico dos papéis de Chevy Chase no cinema, e invertermos o sinal, fazendo com que ultrapassassem a linha que separa a genialidade cômica no escracho grosseiro. Seria, contudo, um reducionismo, porque os atores de Johnnie To, se não conseguem a classe dos dois grandes parlapatões americanos apontados acima, aprofundam no patético como forma de provocar risos desavergonhados do público.

The Eighth Happiness tem todos os sintomas da década de 80, mesmo em momentos tristes como o da mãe paquerada pelo irmão intelectual de Chow, que escorrega e cai no palco, no meio de uma representação da ópera chinesa. O filme é um legítimo expoente da era da aeróbica, dos cabelos montados com permanente, das roupas espalhafatosas e coladas no corpo, dos sintetizadores musak, dos filtros publicitários. Respira artefatos típicos da máquina de HK, para quem os diretores trabalhavam num ritmo invejável. É um mau filme, apesar de momentos belos como o do beijo no fundo de uma piscina, mas interessante de se ver para entender melhor como se deu a evolução de Johnnie To.

No ano seguinte, a contrapartida séria é lançada, All About Ah Long, que traz novamente Chow Yun Fat, numa atuação impecável, desta vez como um pai caminhoneiro e motoqueiro que reencontra a mãe do menino dez anos depois, publicitária enriquecida por uma temporada passada nos EUA. Ela havia sido derrubada de uma escada e, grávida, teve o bebê inconscientemente. Ele, na prisão, recebeu a criança da avó, que mentiu para a mãe dizendo que o filho havia morrido. Um dramalhão, pode parecer por estas poucas linhas de sinopse. E assim seria, se não víssemos apenas o reencontro entre pai e mãe, e entre mãe e filho, com as devidas dificuldades na aceitação dessas mudanças, e o passado inserido com zelo, em flashbacks discretos e muito bem filmados. Johnnie To tempera essa trama à sua maneira, com sutileza e talento, algo comum a seus filmes mais celebrados, mas bem distante da grosseria proposital de The Eighth Happiness.

All About Ah Long é o que me parece um travelling de avanço combinado com um zoom em direção à escada em que a mãe havia caído, e que a leva a lembrar do momento da queda. Pontuado por uma música melancólica dedilhada ao violão, esse momento sublime já mostra, em 1989, que Johnnie To era um cineasta diferenciado, que sabia imprimir um toque mais sensível a seus filmes. Um toque surpreendente, mais calcado em emoções do que em efeitos da virilidade masculina – ponto chave de vários de seus filmes posteriores. O momento se encerra com um corte para a visão subjetiva da mãe, no presente, olhando para onde o filho nasceu.

Johnnie To inverte a ordem natural das coisas. O que normalmente vemos no cinema é o pai reencontrando um filho, ou descobrindo uma paternidade que lhe era desconhecida. Esse é por si só um tema tocante, que bem trabalhado pode atingir emoções intensas. Ao inverter o jogo, fazendo com que seja a mãe que descubra um filho perdido, vemos a jornada de descoberta e início de uma relação por um outro prisma, o feminino, sem abandonar o ponto de vista de um homem que reencontra o amor de sua vida e se descobre enciumado por ter que dividir o filho, com quem até então dormia agarrado em colchão estreito. O diretor consegue adotar os dois pontos de vista, sendo fiel e ao mesmo tempo traindo o olhar de Hong Kong, predominantemente masculino. Essa adoção de pontos de vista diferentes já é um forte indício de que To iria exibir algumas facetas durante sua carreira (ver artigo Johnnie To: um artista estilhaçado, nesta mesma edição).

All About Ah Long tem um outro trunfo, compartilhado em parte com The Eighth Happiness. É filme que se assume como filho rebelde dos anos 1980, da ascensão dos yuppies e da publicidade, do artificialismo e da perfumaria, e se comporta com dignidade em meio aos germes da falência moral e cultural que desembocaria nos anos 1990. Lida com a frivolidade como o Rohmer de O Amigo de Minha Amiga ou As Quatro Aventuras de Reinette e Mirabelle, flerta com a perdição do capitalismo selvagem como um Joe Dante em Gremlins e Gremlins 2, abraça a emoção descarada como o Rivette de L'Amour par Terre, é descaradamente piegas, de uma maneira deliciosa, como o Eizo Sugawa de O Rio dos Vagalumes ou o Luigi Comencini de Cuore. Revela-se também, pela rigidez e por uma inclinação pela imagem new wave asséptica, que contrasta com o jorro de sentimentos, irmão de dois filmes não tão similares de Paul Verhoeven: Sem Controle e O Quarto Homem, além de ter referências indiretas a Robocop, na insistência em mostrar imagens de televisores ligados. Ao se enfileirar com parte do que se fez de melhor nos anos 1980, o filme serve à carreira de Johnnie To como uma clara evolução, que seria compreendida e assimilada somente dez anos depois, com sua obra maior, The Mission, embora já devidamente diluída pelas regras do filme de gênero. O diretor continuaria grande, mas de uma outra forma, com menos sutilezas – que por existirem em menor número, podem ser notadas com mais facilidade, enganando muita gente, vide Election. A vitalidade e a profunda paixão camufladas por uma esperteza necessária ao culto destinado a ele. Permanece grande, mas sob suspeita: teria ele aprendido rapidamente as regras de um cinema traiçoeiro, brincalhão e pouco afeito ao risco? Seria um filmaço como Exilados igualmente visto como tal vinte anos após seu lançamento, como podemos ver este incrível All About Ah Long? É uma espera longa, mas talvez tenhamos a resposta em menos tempo.

Sérgio Alpendre