TONY MANERO
Pablo Larraín, Chile/Brasil, 2008

A luminescência da discoteca apenas ajudava a perceber a realidade triste e desoladora dos personagens de Os Embalos de Sábado à Noite (John Badham, 1977), um filme-catástrofe em escala íntima. Em Tony Manero, segundo filme do chileno Pablo Larraín, essa amarga constatação é ampliada e deportada para outro universo. Raúl (Alfredo Garcia) é um cover de Tony Manero que se comporta como alma penada. Num país de ruas desertas (o Chile da ditadura Pinochet), ele dissemina a morte. É isso o que ele tem para compartilhar com o mundo. Sua dança é um emulação cadavérica da coreografia de John Travolta. A atração que ele desperta nas mulheres com que vive é uma atração necrofílica. Seus momentos de mais solta emoção se dão no escuro do cinema, no anonimato, só nós espectadores sabemos que ele chora todas as tardes.

Existe uma curiosa coerência estética em Tony Manero: assim como Raúl imita gestos e trejeitos de um personagem que ele vê à exaustão no cinema, Larraín reproduz – com a mesma afasia – os procedimentos que viu em filmes de arte que circulam às dúzias por qualquer festival de cinema hoje em dia. Filmar o personagem de perto sempre, não criar distanciamento, é a principal lição aprendida, aquela que cada vez mais parece isentar os cineastas de suas deficiências. Mas o tiro sai pela culatra: a planificação do registro, sua ambivalência, não obriga o espectador a um exercício de consciência para além do moralismo mais rasteiro. Pelo contrário: todas as consciências estão silenciadas e tacitamente absolvidas por essa técnica de um ponto de vista unidimensional sobre um personagem de ações detestáveis mas que tem vida sentimental. O desagradável de algumas cenas são de uma imaturidade tremenda, diluindo a estratégia de choque em uma “construção de atmosfera”, o que só a torna mais covarde.

Apresentar essa história como quem se vê na impossibilidade de ultrapassar certos limites – impostos pelo personagem? ou pela cartilha do cinema-de-personagem versão anos 2000? – é apenas uma pílula de retórica dentre tantas outras. Personagem e câmera se declaram impotentes. A montagem corta com violência, aumenta o desconforto que os cenários já exprimem em cada ranhura das paredes e do assoalho. Há aquele já conhecido descompromisso com as elipses e aquela aparente arbitrariedade da duração e da mobilidade dos planos. Essa “libertação” da câmera, arrancada de qualquer molde pictórico, acompanhada de uma oclusão (porém não necessariamente anulação) das marcas teatrais do espaço, constitui hoje uma sistematização formal tão hegemônica, dentro de um circuito de world cinema, quanto a narrativa em vaivéns temporais havia sido nos anos 90. A suposta periculosidade desse relato, sua abertura ao acidente e à descoberta, se acha devidamente integrada a um projeto pré-formatado e pré-aprovado; a substância inflamável do presente está totalmente domesticada. E não se trata de um método, mas de um cacoete formal.

Além das “certas tendências” já citadas, destaco o modo como se delineia o contexto histórico: nas bordas do filme, no fora-de-campo, limitado a invasões momentâneas. Um caminhão do exército passa, o personagem – e, portanto, a câmera – se esconde: perfeita imagem de um cinema que não consegue mais afirmar com clareza o que é a História e se protege na sombra da estilização. O suspense da cena é falso: sabemos que Larraín não corre risco algum de ser capturado pela política e pela História. O contexto é só um ingrediente efervescente, é só a “febre”, o sintoma de uma estética parasitada.

Luiz Carlos Oliveira Jr.