A ERVA DO RATO
Julio Bressane, Brasil, 2008

Olhamos para a tela hoje como olhamos antes para o céu. Olhamos os astros e os astros nos olham. Uma luz que acena, uma luz que nos chama, como se de tão longe tentassem revelar seus segredos, ou de tão longe compreender os nossos. (Julio Bressane, Fotodrama)


O primeiro plano de A Erva do Rato mostra o céu a dividir o quadro com o mar, ambos azuis. Há bastante luz nesse plano, bastante sol. Uma panorâmica à esquerda faz então um movimento de 180º e revela o outro lado da moeda: um cemitério e duas pessoas em situação de luto (Selton Mello e Alessandra Negrini). Daí em diante, não haverá mais planos ensolarados, e o céu só será filmado no crepúsculo. Bressane retoma neste filme o oximoro da luz barroca que ele já havia explorado em Sermões – A História de Antonio Vieira: uma noite que ilumina, ou um dia que escurece.

E A Erva do Rato é um filme escuro. Poucos filmes brasileiros são escuros hoje em dia. Na maioria dos casos, as cenas noturnas (mesmo as externas) são de tal maneira iluminadas que chegamos a questionar se é de fato noite ou dia. Parece cena gravada (digo, filmada) em estúdio, e no entanto não é. Há luz demais, luz sobrando, sendo desperdiçada. Quando se quer mostrar tudo desse jeito, é porque não há muito o que ver. Bressane é outra história: ele reconhece a necessidade de diminuir a luz, de deixar o filme imprimir aquilo que só sobressai na escuridão. Menos luz, aqui, significa mais visão, pois a luz não surge em oposição à sombra, e sim como fenda no meio desta. É preciso que o céu esteja escuro para se ver as estrelas, do contrário elas são ofuscadas pelo nosso excesso de luz artificial.

A Erva do Rato nos permite entender melhor o título de um dos livros de Bressane, Fotodrama: luz representada em ação, dramaturgia da luz, photoplay, Lichtspiel. O filme é isso. O personagem de Selton Mello está obcecado pela visibilidade. O suporte de sua obsessão é o corpo de Alessandra Negrini, que ele fotografa de todos os ângulos possíveis. Das palavras que ele antes ditava para ela às fotografias que agora tira há uma mudança de grau e não de natureza: as palavras já eram imagens, o dizer já era uma forma de ver – e de ver além do que a lógica comum pressupõe. Negrini é a esfinge de Bressane pela segunda vez consecutiva (a primeira, naturalmente, foi em Cleópatra), corpo liberto da lei estática que aparentemente o dominava e entregue a poses e movimentos convulsivos que, em virtude da irracionalidade que os caracteriza, tornam essa figura feminina quase inapreensível – a metamorfose é sua condição.

Numa das melhores cenas de A Erva do Rato, Selton Mello revela uma fotografia em seu laboratório caseiro. A imagem brota no papel fotográfico aos poucos, a princípio abstrata e indefinível, depois ganhando mais e mais nitidez, como numa lenta alquimia da forma. A fotografia enfim fica pronta: uma vulva em primeiríssimo plano. É o princípio da vida e da arte. Mas nunca haverá uma imagem definitiva da mulher. O último plano do filme nos afirma isso através do som dos cliques repetindo-se no infinito. Será o “eterno feminino” a que João Bénard da Costa se referia ao falar da obra de Manoel de Oliveira? A Erva do Rato realmente lembra muitos filmes de Oliveira (Belle Toujours, O Dia do Desespero, O Princípio da Incerteza, O Espelho Mágico, A Divina Comédia), com quem Bressane vem demonstrando cada vez mais afinidades. Um grande cineasta se inspirando em outro maior ainda. Uma luz acena do alto de mais de cem anos de cinema, e Bressane acena de volta.

Luiz Carlos Oliveira Jr.