Olhamos
para a tela
hoje como olhamos antes para o céu. Olhamos os astros e os
astros nos olham. Uma luz que acena, uma luz que nos chama, como se
de tão longe tentassem revelar seus segredos, ou de
tão
longe compreender os nossos. (Julio
Bressane, Fotodrama)
O
primeiro plano de A Erva do Rato mostra
o céu a dividir o quadro com o mar, ambos azuis.
Há
bastante luz nesse plano, bastante sol. Uma panorâmica
à
esquerda faz então um movimento de 180º e revela o
outro
lado da moeda: um cemitério e duas pessoas em
situação
de luto (Selton Mello e Alessandra Negrini). Daí em diante,
não haverá mais planos ensolarados, e o
céu só
será filmado no crepúsculo. Bressane retoma neste
filme
o oximoro da luz barroca que ele já havia explorado em Sermões
– A História de Antonio Vieira:
uma noite que ilumina, ou um dia que escurece.
E A Erva do Rato é um filme
escuro. Poucos filmes brasileiros são escuros
hoje em dia. Na maioria dos casos, as cenas noturnas (mesmo as
externas) são de tal maneira iluminadas que chegamos a
questionar se é de fato noite ou dia. Parece cena gravada
(digo, filmada) em estúdio, e no entanto não
é.
Há luz demais, luz sobrando, sendo desperdiçada.
Quando
se quer mostrar tudo desse jeito, é porque não
há
muito o que ver.
Bressane é
outra história: ele reconhece a necessidade de diminuir a
luz,
de deixar o filme imprimir aquilo que só sobressai na
escuridão. Menos luz, aqui, significa mais visão,
pois
a luz não surge em oposição
à sombra, e
sim como fenda no meio desta. É
preciso que o céu esteja escuro para se ver as estrelas, do
contrário elas são ofuscadas pelo nosso excesso de luz
artificial.
A
Erva do Rato nos permite entender melhor o título de um dos livros de
Bressane, Fotodrama:
luz representada em ação, dramaturgia da luz,
photoplay, Lichtspiel.
O filme é isso. O personagem de Selton Mello está
obcecado pela visibilidade. O suporte de sua obsessão
é
o corpo de Alessandra Negrini, que ele fotografa de todos os
ângulos
possíveis. Das palavras que ele antes ditava para ela
às
fotografias que agora tira há uma mudança de grau
e não
de natureza: as palavras já eram imagens, o dizer
já
era uma forma de ver – e de ver além do que a
lógica
comum pressupõe. Negrini é a
esfinge de Bressane
pela segunda vez consecutiva (a primeira, naturalmente, foi em
Cleópatra), corpo
liberto da lei estática que aparentemente o dominava e
entregue a poses e movimentos convulsivos que, em virtude da
irracionalidade que os caracteriza, tornam essa figura
feminina quase inapreensível – a metamorfose
é
sua condição.
Numa
das melhores cenas
de A Erva do Rato, Selton Mello revela uma
fotografia em seu
laboratório caseiro. A imagem brota no papel
fotográfico
aos poucos, a princípio abstrata e indefinível,
depois
ganhando mais e mais nitidez, como numa lenta alquimia da forma. A
fotografia enfim fica pronta: uma vulva em primeiríssimo
plano. É o princípio da vida e da arte. Mas nunca
haverá uma imagem definitiva da mulher. O último
plano
do filme nos afirma isso através do som dos cliques
repetindo-se no infinito. Será o “eterno
feminino”
a que João Bénard da Costa se referia ao falar da
obra
de Manoel de Oliveira? A Erva do Rato
realmente lembra
muitos filmes de Oliveira (Belle Toujours,
O Dia do Desespero, O
Princípio da Incerteza, O
Espelho Mágico,
A
Divina Comédia),
com quem
Bressane vem demonstrando cada vez mais afinidades. Um grande
cineasta se inspirando em outro maior ainda. Uma luz acena do alto de
mais de cem anos de cinema, e Bressane acena de volta.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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