ARRASTE-ME PARA O INFERNO
Sam Raimi, Drag me to hell, EUA, 2009

Cristine Collins vive uma rotina programada. Vai de casa para o trabalho, concede alguns empréstimos para os clientes que merecem, sai no horário de almoço para encontrar-se com o namorado (que trabalha a apenas alguns quarteirões de distância), depois volta em seguida ao banco para cumprir as horas de trabalho que ainda faltam. Uma ausência de singularidade rege os espaços que a cercam e caracteriza as pessoas à sua volta. Sobretudo nesse primeiro segmento de filme, os atores terão rostos neutros, inexpressivos (ou, ao contrário, de fácil leitura), e a composição visual dos ambientes, tanto no trabalho fotográfico quanto cenográfico, parece ter ecos não muito distantes de imagens publicitárias. Exceto pelo passado de adolescente gordinha do interior que ela luta para esconder praticando pronúncia e fazendo dieta, não há bizarrices na vida de Cristine. Ao contrário, tudo parece estar excessivamente correto, meticulosamente no lugar e, com a perspectiva de uma promoção no trabalho, as coisas parecem caminhar em um ritmo bom e na direção certa. Até que surge a Sra. Ganush em sua mesa para lhe pedir uma terceira extensão de seu crédito, sob o risco de perder a casa por inadimplência.

É aqui que Sam Raimi cria, com uma decupagem absolutamente funcional, um dos melhores momentos de seu novo filme. Representando a decisão de Cristine, seguem-se três planos-ponto-de-vista: primeiro a pobre velhinha, depois Stu (seu rival no trabalho, que ambiciona a mesma promoção que ela), em seguida a cadeira vazia do cargo que deseja ocupar, nessa ordem. É uma cena rara na maior parte do cinema americano de gênero feito hoje, que parece ter excluído de sua cartilha a possibilidade de lidar com tamanha frontalidade com as motivações dos personagens, que aqui são psicologicamente muito mais simples que nos últimos filmes de Sam Raimi.

Mais do que uma simples questão de gêneros, Arraste-me para o inferno é um filme que de uma maneira geral transita muito bem entre pólos opostos. Chama atenção a naturalidade com que Sam Raimi articula universos tão distintos e incompatíveis quanto o ordinário/material e o fantástico/sobrenatural sem nunca esbarrar em velhos clichês. Exemplo maior disso é a própria personagem da Sra. Ganush, que se torna uma presença demoníaca na vida de Cristine depois que tem seu pedido de empréstimo negado. Na cena antológica em que as duas lutam no estacionamento, vemos que a Sra. Ganush é capaz de se metamorfosear em um lencinho e de se materializar aonde bem entende. No entanto, seu corpo é frágil e se fere com os golpes de Cristine, e veremos mais tarde que também é suscetível à morte como todos os outros. Ainda no início da cena, a Sra. Ganush aparece magicamente dentro do carro de Cristine, mas a jovem consegue expulsá-la para fora após muita luta. Nesse momento, a fisicalidade do carro de repente se torna uma questão, e a Sra Ganush precisa recorrer a um enorme tijolo para quebrar o vidro do carona. Curioso como as fronteiras entre os poderes sobrenaturais e as limitações da matéria se submetem muito naturalmente aos jogos estéticos/visuais de Sam Raimi nessa cena muitíssimo bem filmada.

É nesse momento fatídico que a Sra. Ganush evoca uma terrível maldição em Cristine. Ao fim de três dias, se não conseguir se livrar da magia negra, a jovem irá diretamente para o inferno. Há um desequilíbrio visível não apenas na rotina da personagem, mas também na própria estrutura do filme. Os quadros harmônicos e centralizados se tornam oblíquos, a câmera fixa dá lugar a movimentos de câmera complexos, a montagem se liberta do ritmo regular do início do filme. A partir desse dia, a vida de Barbie de Cristine se transforma num show de horrores, e ela passa a contar com a ajuda de figuras bizarras como o guia espiritual junguiano Rham Jas para tentar se livrar de Lâmia, o espírito maligno que a atormenta. O filme assume um tom mais debochado (não confundir com descrente), o roteiro se treslouca, cada vez mais simples e elementar, e Sam Raimi extrapola de vez sua vocação para a comédia. Rham Jas tem a cada nova visita de Cristine uma idéia mais mirabolante para combater a maldição, sempre com base nas consultas que faz aos seus livros de magia negra. Quanto mais o filme prossegue no absurdo, mais crível é Lâmia e a luta desses personagens adoravelmente estúpidos para vencê-la.

Arraste-me para o inferno possui uma estrutura bem mais simples que os últimos filmes de Sam Raimi. Ao contrário do que vinha acontecendo com Homem-Aranha (especialmente no terceiro episódio), a narrativa aqui se movimenta sob a ação de uma só força – a protagonista que tenta resolver esse único e gigantesco problema que acometeu sua vida. Um argumento excelente porque vagabundo. O estranhíssimo prólogo do filme já queria anunciar: em Arraste-me para o inferno, Sam Raimi retorna de certa maneira ao gore/trash pelo qual ele próprio começou a fazer cinema lá no início dos anos 80, e parece divertir-se imensamente com isso. Os bonecos e o stop-motion de duas décadas atrás dão lugar a seres e cenários criados digitalmente, mas ainda estão lá os mortos que retornam malignos para infernizar os vivos, ainda estão lá os corpos demoníacos em levitação, as gosmas sendo vomitadas. É incrível como, entre seu primeiro e seu último filme, Sam Raimi obteve resultados tão distintos mesmo trabalhando com elementos de um mesmo imaginário, de uma mesma mitologia e de um mesmo gênero. A diferença passa menos pelo rebuscamento de uma produção muito mais cara que pela experiência de um diretor que deixou de ser o jovem cineasta deslumbrado de início de carreira para se tornar um dos poucos dentro do cinema americano de grande orçamento com um real domínio da mise-en-scène.

Alice Furtado