pequenas ambições, grandes sentimentos

Se Ida Lupino fosse pintora, sua casa seria seu ateliê. Ela pintaria o que está ali ao alcance, um detalhe a cada dia, coisas comuns, imediatamente disponíveis. As coisas da casa são as coisas que estão perto, que se oferecem à representação não porque foram preparadas para o olhar da artista, mas porque estão onde o tempo as colocou. Não é fácil encontrar as palavras adequadas para definir um olhar como esse de Lupino, que, na maior parte do tempo, é o mais natural possível, o mais desvencilhado, o menos pretensioso. É o olhar da proximidade – uma proximidade serena, o oposto de um olhar esganiçado que quer ultrapassar seus limites e penetrar em tudo que vê. Logicamente, há uma distância dentro mesmo dessa proximidade, uma distância guardada de modo a evitar que se anule a exterioridade daquilo que é visto. O olhar de Lupino não é o do deslumbramento nem o da contemplação hipnótica, mas um olhar que se direciona a coisas que não precisam de validade, só de presença. Apesar de mostrar um mundo intensificado por grandes aflições, obsessões e paixões veementes, habitado por personagens viscerais e recheado de premissas melodramáticas, Lupino não aquiesce a nenhum tipo de afetação. Tramas sinuosas, contrastes excessivos e efeitos cênicos são deixados de lado. Ela trilha o caminho de um classicismo serenizado, que age com clareza e ponderação mesmo quando deparado ao trágico. É bem possível que estejamos falando de uma redução formal que caracteriza um essencialismo, ou seja, de uma absorção integral da significação em sua manifestação sensível, a forma exterior sendo idêntica ao que constitui seu fundo íntimo. A consciência não se eleva acima da forma; a forma e a consciência estão à mesma altura, como em Mizoguchi, em Ford, em Hawks, como no Losey de O Menino dos Cabelos Verdes e The Lawless.

Não há como abordar os filmes de Lupino sem destacar uma franqueza do olhar, que traz na sua esteira uma simplicidade sentida como um calor da mise en scène. Esse calor se expressa, entre outras coisas, por uma ênfase no gesto, por ações como aquela da menina dividindo com o namorado os bolinhos que comprou (começo de Outrage), ou aquela do rapaz jogando fora o cigarro enquanto beija a protagonista de Not Wanted (a mão dele é vista em destaque e ocorre um corte para o cigarro sendo levado pela taciturna correnteza de um rio).

O drama em Lupino é o que está muito próximo, em escala micro. Existe o drama das grandes distâncias cósmicas, das vastas emoções, mas não é esse que lhe interessa. Ela faz o drama se reduzir sobre si mesmo. Daí seus filmes mostrarem uma espécie de “América pequena” (nada a ver com o clichê da “América profunda”): um horizonte diminuído porque limitado ao que pode ser visto/tocado/sentido, sem que isso resulte em qualquer forma de clausura empirística ou asfixia dramatúrgica. As grandes ambições devem ser evitadas porque afastam a personagem do mundo das coisas-que-são e atraem-na para o ilusório e o supérfluo. É uma questão de constatar que existem duas ou três coisas para as quais se vive de fato, e que as demais ambições são vãs. A única ambição pela qual vale lutar é a de atingir a evidência – quer dizer, a consciência, a potência e a sensibilidade – dos próprios atos. É preciso ser dono das próprias ações, libertá-las de toda ganância (sua ou alheia) e de toda sobra (material ou espiritual), para chegar à pureza do gesto que, em si, é o mais nobre destino da mise en scène.

Hard, Fast and Beautiful é um filme exemplar nesse sentido. A jovem Florence (Sally Forrest) renuncia a uma promissora carreira como tenista profissional para retornar à sua cidade em companhia do namorado. Impossível não relacionar o enredo do filme à recusa feita pela própria Lupino: “Recebi algumas propostas fora do país – na Espanha, na Itália e na Grécia –, todas com roteiros bem aceitáveis. Mas amo meu marido e minha filha. A vida é muito curta para que eu os abandone durante cinco, seis meses e percorra o mundo. Eu não iria” (cf. “Moi, la mère metteur en scène”, Positif nº 301). A personagem de Sally Forrest em Hard, Fast and Beautiful pensa da mesma forma. A cada raquetada que Florence dá em direção à vitória, sua força parece paradoxalmente empenhada em zunir para longe o universo das competições internacionais ao qual ela se destina. Florence sente sua energia sendo vampirizada por outros – o empresário, a mãe que quer transformá-la em estrela do esporte (Claire Trevor em performance sensacional). Ela consegue se libertar ao optar por uma vida voltada para o universo das pequenas ambições, porém dos grandes sentimentos.

O mundo da pulsão

Quem viu High Sierra de Raoul Walsh deve lembrar – pois é inesquecível – daquela primeira aparição de Ida Lupino no filme: ela está sentada à frente de um casebre, cabeça baixa, fazendo rabiscos na terra com um galho seco. É a imagem de uma intimidade tão sossegada, amena, tão completa em si mesma que chega a ser cortante. Não há fragilidade, pelo contrário: quando ela levanta o olhar na direção de Humphrey Bogart, vemos uma mulher indubitavelmente forte. Mas qualquer perturbação, mínima que seja, inofensiva que seja, ameaça despedaçar essa paz momentânea, uma paz que é sublime justamente por ser a afirmação condensada de tudo que o mundo ao redor da personagem nega e continuará lhe negando indefinidamente. A paz verdadeira é impossível – exceto naquele instante.

Nessa imagem de High Sierra, encontramos um elemento dramático que Lupino trabalhará em alguns dos longas-metragens que dirigiu: uma bolha de sossego que o mundo insiste em estourar, para liberar, desordenadamente, uma violência pulsional, originária. Em Outrage, o contragolpe dessa violência (iniciada a partir do estupro sofrido pela protagonista) é fazer nascer a imagem de maior pureza, de maior inocência, esguicho de um mundo anterior – a imagem que o protetor e acolhedor ambiente familiar não conseguiu produzir. No começo do filme, Ann (Mala Powers) vive com os pais num lar agradável e namora um rapaz sério e respeitador, que deseja se casar com ela. Há uma cena singela em que Ann, seus pais e o namorado conversam. O detalhe do rapaz, nitidamente tenso, futucando uma parte rasgada do sofá em que o estofado está para fora, enquanto responde às perguntas do sogro sobre planos para o futuro, é um desses gestos enfatizados que eu antes comentava, e que vão conferir ao cinema de Lupino uma materialidade indiscutível.

A perseguição que leva à cena do estupro é de grande impacto: a música de fundo é subitamente estancada por um assovio do estuprador, o desenrolar é angustiante, o silêncio põe em destaque os sons dos passos, Ann se perde em ruas escuras, estreitas, esgueira-se por um muro com cartazes de palhaços ameaçadores (raro momento de exacerbação cenográfica em Lupino), tenta se esconder num caminhão mas dispara a buzina acidentalmente, o homem a alcança, ela fica caída no chão indefesa, imóvel, paralisada pelo medo. A sequência revela uma vocação de Lupino para o suspense que será aprimorada em The Hitch-Hiker, violento noir no qual dois homens dão carona a um serial killer que transforma a viagem em pesadelo. O espaço da fronteira com o México, das grandes estradas rodeadas de deserto, dos vales rochosos dos westerns, esse espaço em The Hitch-Hiker parece ignorar a carga simbólica que suas paisagens haviam adquirido. O espaço mais codificado do cinema americano é devolvido à nudez. Lupino segue aqui a mesma lógica que a conduz a filmar interiores de típicas casas de família americanas sem cair no pitoresco, mas sem abdicar de construir um retrato daquele mundo. Seus cenários são despidos de caricatura, de distorções ou de ornamentos. Quando algo deste gênero ocorre – vide o ambiente sombrio onde o jovem casal de Never Fear tem uma fervorosa discussão, ao lado de uma estátua satírica que parece zombar da desconexão física dos dois –, ultrapassa a simples estilização e se coaduna aos gestos dos personagens. Jamais veremos marcas de enunciação gratuitas nos cenários de Lupino, pois estes são absolutamente indissociáveis de sua atividade como suporte natural do drama, de uma forma tal que muitos dos cineastas da transparência que conhecemos soam um pouco expressionistas ao lado dela.

Voltando a Outrage: depois que Ann é estuprada, tudo se transforma. Aquele mundo do cotidiano pacato, do lar familiar, do labor conformista, do namoro quase infantil, se tornará insuportável. Ann foge de casa, muda de cidade e de vida. Quem auxilia seu processo de readaptação é Bruce (Tod Andrews), um reverendo gentil e compreensivo, que não ousa invadir sua privacidade ou levar a relação para o plano físico. O contato com os homens, antes expresso no cuidado do pai e nos gestos não abusados do namorado, estará agora tacitamente reprimido (no caso da amizade ambígua com Bruce) ou se tornará uma ameaça concretizada na cena da festa na nova cidade, quando a investida insistente de um rapaz faz Ann rememorar a cena do estupro e seu corpo reage instintivamente, golpeando a cabeça dele com uma ferramenta. A violência sofrida por Ann se alojou em seu corpo, ficou incubada aguardando pelo momento de ser devolvida ao mundo. Quando esse momento chega, a violência rasga o plano. Lupino nos apresenta, com um grau de pureza inaudito, o mundo da pulsão.

O drama do corpo

Outrage não é o único filme de Lupino fundado sobre um evento que atinge o corpo em cheio. Para um cinema em que a dramaturgia se confunde à própria pele dos atores, nada mais justo do que conduzir suas narrativas a partir de transformações ocorridas no corpo. Lupino, contudo, está nos antípodas de um cinema que foge da consciência e busca no corpo – sobretudo o corpo jovem-adolescente – uma matéria amorfa, pré-consciente, massa prenha de energia submetida unicamente às leis da afetividade e do impulso momentâneo. Em seus quatro primeiros filmes, assim como no último, Lupino se dirige justamente ao corpo jovem, inexperiente, mas não faz apologia de nenhum estado pré-consciente. Suas protagonistas, de Not Wanted a The Trouble with Angels, passando por Outrage, Never Fear e Hard, Fast and Beautiful, não se resumem a ações desprovidas de sentido, não são corpos inundados pelo éter do presente respondendo a estímulos pontuais. É exatamente o contrário disso o que elas representam: seres à procura da lucidez, confrontados à vida e engajados nela, fazendo da experiência um acesso ao conhecimento, e não uma negação da lei da gravidade. O corpo está sujeito ao peso do mundo, e a força da personagem consistirá em conhecer esse peso, enfrentá-lo, quiçá revertê-lo a seu favor, tirando dele um aprendizado ou mesmo uma revelação.

Para os dois primeiros filmes que dirige, Not Wanted e Never Fear, Ida Lupino repete a dupla de atores principais, Sally Forrest e Keefe Brasselle. Em Not Wanted, a perfeita combinação dos dois culmina na antológica cena final, em que Sally (a personagem tem o mesmo nome da atriz) foge de Drew (Brasselle), corre pelas ruas, sobe uma passarela, e ele, mesmo sendo manco, corre atrás dela, até que sua deficiência o impede de seguir em frente. Ele cai no chão aos prantos. Sally volta para ajudá-lo e os dois se abraçam: é diante de um outro drama do corpo (o de um homem mutilado) que ela pode se resolver com o seu (o de uma gravidez indesejada cujo fruto ela “abandonou”). Já em Never Fear (que antes se chamava The Young Lovers), Sally Forrest interpreta Carol, dançarina que sofre de poliomielite. Se no começo do filme seu corpo é mostrado em desenvoltas e sensuais coreografias, depois estará limitado à cama do hospital e à cadeira de rodas. À dança exuberante vista no início corresponderá, na segunda parte do filme, a fisioterapia. O erotismo do belo número musical que ela realiza ao lado de Guy (Brasselle) cede lugar às melancólicas sessões de recuperação no hospital, ambiente fechado, insular. Carol perde a mestria sobre seu corpo, perde a noção de força. Ela precisará reaprender a motricidade, voltar a ser dona dos seus movimentos. Para isso, Carol precisará antes compreender sua atual passividade, sua dependência dos outros, realidade por demais terrível para quem se julgava em pleno domínio das ações corporais e, por conseguinte, do espaço. Como diz a cartela final do filme, o processo exige coragem, exige fé. A grande cura de Carol, evidentemente, só ocorre quando sua alma se apazigua. Através de uma mise en scène fincada na realidade palpável do plano, Lupino nos instila essa crença de que o corpo e a alma zelam um pelo outro, são indissolúveis.

Os traumas, tristezas, doenças ou desgastes que atravessam o caminho dos personagens de Lupino podem passar uma visão enganosa, de um mundo inelutavelmente aprisionante. Mas não é isso o que acontece. A precariedade da existência, a suscetibilidade dos seres, patente nos filmes de Lupino, serve para encorajar a vontade irreprimível de uma personagem, vítima das circunstâncias, se provar mais forte que o algoz (seja ele um serial killer, um vírus ou um dilema existencial). O espírito confuso, em Lupino, tem sempre a chance de encontrar o gesto que o recolocará em sincronia com a dança do universo.

Never Fear termina com Carol dando seus primeiros passos fora do hospital em que ficou internada durante um longo período. Seu corpo e sua mente lutam para vencer a paralisia. Ela busca força onde pode, e acaba avistando Guy um pouco adiante (uma alucinação?). Carol consegue chegar até ele, vence o capítulo final do seu drama do corpo. O filme acaba. Os finais de Lupino são concisos e marcantes. Um ônibus que parte, a expressão no rosto do homem que vê esse ônibus partir (Outrage). Um desespero que de repente se converte em instinto de proteção (Not Wanted). Um abraço de duas amigas que se reconciliam (The Trouble with Angels). Uma mulher que se vê abandonada numa arena vazia (Hard, Fast and Beautiful). Uma mulher que se mantém de pé e põe-se a andar (Never Fear). E nós agora sabemos um pouco mais sobre o mundo.

Luiz Carlos Oliveira Jr.