OTTO PREMINGER
ou "O que é a mise en scène?"

A Troca me levou a rever Bunny Lake Is Missing (1965). O filme de Clint Eastwood tinha algumas coisas que me faziam lembrar dessa formidável obra de Otto Preminger. Revisão feita, constato que as diferenças – de tom, enredo, clima, encenação etc – são inúmeras. Mas o que interessa no momento são os pontos em comum: Bunny Lake é o drama de uma mulher, Ann, que acaba de se mudar dos EUA para a Inglaterra e, ao ir buscar sua filha na escola no primeiro dia de aula, constata que a menina desapareceu. Ann notifica o sumiço às autoridades. A questão é que a polícia, uma vez acionada, não consegue encontrar vestígios de que a criança sequer exista, e a integridade psicológica da mãe é colocada em xeque. O filme não mostrou a menina em nenhum momento (mas mostrou o irmão de Ann catando um bichinho de pelúcia no chão já no primeiro plano...), o que se revela menos uma estratégia de suspense (que se conflagraria ao levantar, também no espectador, a dúvida sobre a existência da criança) do que um “teste” para a personagem, para o filme e para o espectador. Para a personagem, o teste pode assim se enunciar: como não se distrair da verdade mesmo em meio ao mais asfixiante complô das falsas aparências e do anuviamento dos fatos. Para o filme: como encontrar o equilíbrio entre uma mise en scène onde cada plano mobiliza uma fortíssima tensão antecipatória do plano seguinte e, no entanto, sabe tanto quanto a personagem, não podendo extravasar o presente das ações, o que implica ainda uma segunda etapa de equilíbrio, agora entre manter a objetividade do relato e compartilhar da turbulenta carga emocional da protagonista (desmesurada para quem dela desconfia, justa para quem nela acredita). Ao espectador, cabe não mais que o discernimento; ver o filme, saber aguardar pelo plano seguinte. Aguardar não pela chave do mistério, mas pela beleza da busca. Como em A Troca*.

Bunny Lake vem após a sucessão de “afrescos coletivos” da primeira metade dos anos 1960 – Exodus, Tempestade Sobre Washington, The Cardinal, A Primeira Vitória. Destes, o filme guarda aquele que talvez seja o veio de Preminger que mais ficou para a história, o “de um grande repórter, de um romancista da realidade, apegado sobretudo aos vastos assuntos, aos dramas e às epopéias do mundo contemporâneo” (cf. Jacques Lourcelles, “Preminger aujourd'hui”, texto presente no catálogo da retrospectiva realizada na Cinemateca Francesa em 1993). E traz também a parcimônia de lentamente ir conhecendo as pessoas, os lugares e a rede de relações criada (o que já era o ingrediente central de alguns de seus melhores filmes, como Angel Face, Bom Dia Tristeza, Tempestade Sobre Washington). Ao mesmo tempo, Bunny Lake se volta para uma trama psicológica de curvas sombrias, com cenas no limiar do fantástico (como a da loja de bonecas). A mestria de Preminger, nesse filme, é a de ir até a fronteira a partir da qual a atmosfera se interiorizaria por demais e a estilização reinaria e parar um pouco antes, onerando a pressão sobre os personagens sem permitir que o drama se rompa na abstração e no desperdício (pois ele precisa permanecer no real e no concreto, do contrário esse filme não faz sentido). Beirando um certo absurdo, o clímax final no jardim da mansão é um jogo psicanalítico bem calculado, pretexto para um verdadeiro tour de force de mise en scène física.

As gruas e os travellings de Preminger em Bunny Lake elevam a um grau máximo todos os elogios que tantas vezes fizeram por merecer: fluidez, elegância, uma câmera imediatamente sensível aos movimentos dos personagens e do mundo. No entanto, é um corte o que devo comentar aqui. Na verdade, um corte dentro da continuidade. A cena é aquela em que Ann e o superintendente Newhouse (Laurence Olivier), que investiga o caso, conversam num pub: a televisão está ligada e transmite o noticiário; o apresentador começa a falar do desaparecimento da filha de Ann, ao que ela e Newhouse interrompem a conversa e prestam atenção no telejornal. Corta para um plano mais próximo da TV, da qual a câmera chega ainda mais perto, mas o barman troca de canal e passamos a assistir a um show do The Zombies. Preminger inscreve na continuidade sensível do plano uma realidade fragmentária, profusa. Brilhante contradição. Sua dramaturgia está em algum lugar entre a objetividade jornalística e uma certa vertigem do presente, ou entre o ponto de vista do superintendente Newhouse, o olhar da ponderação, e o de Ann, exasperado, atormentado.

O que essa revisão de Bunny Lake Is Missing me fez lembrar, acima de tudo, foi que assistir a um filme de Preminger é perceber o acontecimento simultâneo de todos os elementos implicados na sua construção. Todo e qualquer fator direta e materialmente envolvido na dramatização constitui profundamente, elementarmente, primordialmente o objeto de sua arte. Uma concepção pragmática e materialista da cena, o que não significa se fechar às infiltrações de todos os aspectos imateriais e fantasmáticos potencialmente presentes. O cinema de Preminger se confunde à definição mesma de mise en scène, e não à toa sempre que Jacques Rivette se propunha a escrever um texto sobre ele acabava se deparando com uma nova formulação do que seria a mise en scène:

“É na mise en scène que Preminger primeiramente acredita, na criação de um complexo preciso de personagens e de cenários, uma rede de relações, uma arquitetura de relacionamentos, movente e como que suspensa no espaço. […] Se uma palavra tivesse de definir Preminger, seria efetivamente metteur en scène, ainda que sua experiência cênica pareça aqui pouco influenciá-lo; no seio de um espaço dramático nascido do afrontamento dos homens, ele exploraria antes ao extremo essa faculdade do cinema, de captação do acaso – mas um acaso desejado –, de escritura do acidental – mas um acidental de invenção –, pela proximidade e agudeza do olhar...” (“L'essentiel”, Cahiers du Cinéma nº 32, fevereiro de 1954)

“E viva Preminger, que sabe que ele não é nem um pensador nem um reformador do mundo, mas simplesmente um perfeito metteur en scène, que nessa expressão há cena, e por que o teatro seria para nós matéria [não] cinematográfica?” (“En attendant les Godons”, Cahiers du Cinéma nº 73, julho de 1957)

“A arte da mise en scène é antes uma arte de pôr as coisas no lugar ou no tempo desejados: proporções perfeitas do quadro, arabescos das atitudes, o papel inteiro de Jean Seberg, tudo nos conduz a retomar em minúcia a afirmação final de Bernanos: 'Tudo é graça'. […] A invenção que surpreende em cada plano desse filme é antes uma certa genialidade do resumo; a arte do desenhista (e a passagem de Angel Face a Bonjour Tristesse é aquela do esboço ao afresco) é a de saber quais traços são essenciais, quais devem ser acentuados ou eliminados, quais devem ser às vezes inventados do nada para suprir um entrelace confuso; a arte do metteur en scène, de um espetáculo ou de um fato, é saber quais são os elementos indispensáveis ao equilíbrio da figura, ou seja, a cena tal como inscrita em seu lugar definitivo no filme.” (“Sainte Cécile”, Cahiers du Cinéma, nº 82, abril de 1958)

Nesses três momentos, portanto, no decorrer dos anos 1950, Rivette buscou compreender o que era o cinema de Preminger consciente de que um tal esforço, se bem sucedido, equivaleria à descoberta do próprio segredo da mise en scène. Falar de Preminger era falar de um “em si” da mise en scène. Jacques Lourcelles encontrará essa mesma evidência em seu livro sobre Preminger:

“Sobre o papel, toda cena escrita se reduz forçosamente a uma sucessão de idéias, de detalhes, de traçados mais ou menos engenhosos e abundantes. Sobre a tela, contrariamente, convém que esses detalhes não apareçam mais enquanto tais, enquanto efeitos isolados, mas que eles estejam todos fundidos no corpo e no tempo da narrativa. A melhor mise en scène possível é evidentemente aquela que é a mais desprovida de 'idéias de mise en scène [...] Ora, é a adesão estrita do cenário à ação que permite uma melhor absorção harmoniosa desses detalhes significativos por uma narrativa que saiba articulá-los em silêncio, sem maneiramento e sem ruptura. Ao grau dessa absorção, é preciso julgar a qualidade de uma mise en scène.” (Otto Preminger, Paris: Éditions Seghers, 1965, pp. 21-22)

Por fim, cumpre deixar a palavra a ele, Otto Preminger:

“Existem metteurs en scène que se limitam a dizer aos atores: 'Sente-se aqui, sente-se lá, levante-se', e que deixam o ator fazer as indicações contidas no roteiro. Mas isso não é mise en scène. Não é direção de atores. A direção de atores, na verdade, são coisas físicas, aparentemente sem importância, porque é unicamente uma questão de dinâmica. Tanto faz falar alto ou falar baixo, se sentar ou se levantar, se mexer ou permanecer imóvel. O que importa é o modo como você distribui essa dinâmica. Mas o que importa, sobretudo, é a maneira de criar relações entre as pessoas para que elas possam tranquilamente se instalar em conjunto. E o metteur en scène tem esse poder às vezes sem que os atores o saibam, às vezes sem que ele mesmo o saiba. […] Eu trabalho muito próximo dos atores, e eu conheço o roteiro de cor no momento em que o aceito. Faço uma representação visual das coisas: sei como vou proceder. Mas quando ensaio com os atores, modifico com frequência minhas ideias porque gosto que o filme ganhe consistência no momento dos ensaios, na ocasião de um contato humano […] Você deve filmar um cenário, seja num cenário natural ou num estúdio, tão verdadeiro quanto possível, porque a câmera é realista. Naturalmente, o cenário interpreta um papel. Trabalho muito nas cenas, discuto as cores, pois mesmo para um filme em preto e branco, as cores a meu ver são importantes, porque elas dão um certo humor aos atores. O ator está bastante assujeitado ao que o rodeia. Não que você o veja, você espectador, porque o marrom, o verde dessa cadeira estarão cinza. Haverá somente uma pequena diferença de 'valor'. Mas para o ator que está sentado nessa cadeira, é diferente. Se eu fizesse tudo cinza, sairia parecido na foto, mas se eu dou ao ator uma cadeira como esta aqui, florida, isso lhe dará um sentido de realidade que, de alguma forma, será refletido em sua atuação. […] Naturalmente, o movimento de câmera não é da competência do cameraman. Ele é completamente dirigido pelo metteur en scène. Poucas pessoas sabem disso. A maioria pensa que atrás da câmera há somente um cameraman. O mesmo vale para a montagem. O montador se limita a cortar o filme fisicamente. O metteur en scène lhe dá cada forma. […] Geralmente se contrata o compositor da trilha sonora quando o filme está encerrado e ele escreve a partitura em quatro semanas. Meu sistema é engajar o compositor antes de começar o filme. Ele está sempre comigo no set. Ele tem a possibilidade durante meses de estudar meu trabalho e mergulhar na atmosfera. Ele aprende certas coisas a propósito dos atores, ele vê como eu dirijo as cenas, e geralmente sua música é um resultado disso.” (Idem, pp. 109-111)

O que essas afirmações de Preminger descrevem é nada mais, nada menos que a aventura de uma palavra – mise en scène – no seu trajeto de migração das artes cênicas para o cinema. Migração que ele mesmo, Preminger, viveu em sua carreira, indo do teatro para o cinema. E ninguém soube melhor que ele como exercer um domínio total sobre a matéria e sobre a forma ao tornar homogêneos esses elementos vindos diretamente da prática da cena, tais como a arte do ator, do cenário, do texto, da construção narrativa do espetáculo por meio de focalizações espaciais e recortes cenográficos, fundindo-os aos elementos “novos” da montagem, da tomada de vista, da apreensão sensível do movimento, da luz e da presença. No lugar de dizer “o cinema de Otto Preminger”, portanto, podemos simplesmente dizer: eis o que é a mise en scène, afinal.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

* O próximo filme de Eastwood, conforme me diz o IMDB, se chamará The Human Factor, exatamente o mesmo título da obra derradeira de Preminger (o melhor último filme já realizado por um grande diretor?). Será coincidência? Ou será que Eastwood anda mesmo vendo Preminger?