A FRONTEIRA DA ALVORADA
Philippe Garrel, La Frontière de l’Aube, França, 2008

O que é essa zona limítrofe a que Philippe Garrel nos conduz, a “fronteira da alvorada”? É mais um de seus títulos poéticos e inspirados, mas é também um endereço, o nome de um país imaginário onde a faixa de divisão da luz e das emoções se torna via obrigatória, o único caminho possível para se fazer um filme. Garrel é um cineasta que estabelece na fronteira sua capital. De tão elementar que é o processo, um filme como A Fronteira da Alvorada nos obriga a ser fiel a seus meios expressivos primeiros e não falar senão da luz, do quadro, do som, do corte, da duração e de tudo mais que for evidência e não apenas indício. O zoom que chega no rosto da atriz quando sua personagem decide que não quer fazer as fotos naquele dia, o plano de um rapaz atormentado pela atenção exclusiva que a namorada concede a um outro homem na profundidade de campo (a mise en scène do ciúme, voilà), o corpo feminino se contorcendo em uma dor irremediável que evoca simultaneamente o parto, o esforço e a morte e lembra uma cena de Je Vous Salue, Marie, os diálogos que variam de frases passageiras provocadas por encontros casuais a fantásticas teorias sobre o amor são algumas das cenas de A Fronteira da Alvorada que trazem todo o peso que podemos esperar de Garrel.

A fotografia segue o mesmo preto-e-branco áspero de Amantes Constantes. O som traz a primeiro plano a respiração entre uma frase e outra, os soluços, os pigarros, a mumunha, o dedo arrastando no tecido, a bebida descendo pela garganta, toda uma galáxia de micro-eventos sonoros que tornam o mundo visível mais real, sólido e complexo. A montagem de Yann Dedet (seu currículo, para resumir a importância, inclui os filmes de Pialat de Loulou em diante – além, é claro, de alguns dos melhores filmes do próprio Garrel, como O Nascimento do Amor e J’entends plus la guitare) é das poucas que podem ainda ser sentidas, para usar a prodigiosa metáfora de Godard, como um “batimento do coração”, um instrumento emocional indispensável cuja função não é organizar – ou seja, não é reiterar a noção canônica da montagem como etapa geradora de sentido, raccord, sutura – a matéria tão lírica quanto rudimentar da mise en scène, mas bombear vida no corpo do filme, respeitar a força do fragmento e, ao mesmo tempo, afirmar a unidade do ponto de vista sobre aquele mundo.

E o mundo de Garrel é habitado por pessoas que ainda vivem e morrem por amor. Ele filma nas ruínas do romantismo, do outro lado da fronteira que separa os homens de suas utopias, em cenários destinados somente ao primeiro e ao último ato. Os homens nunca estão maduros para o amor, ou então já passaram do ponto. As mulheres são o que são, e por isso mesmo ocupam o centro do universo. As forças de atração são diretamente proporcionais às de fuga: lei do coração que se submete ao experimento e se mostra irrevogável na mise en scène (e na montagem como sua continuação lógica). Ter ou não ter um filho, estar perto ou não de outrem: as questões afetivas fundamentais são aquelas que melhor estruturam o cinema de Garrel, culminando no dilema existencial último, viver ou não viver. Não fosse pelo choque do plano final, talvez um pouco dissonante (mas A Fronteira da Alvorada é dos raros filmes que nos fazem admirar justamente a renúncia ao equilíbrio e à perfeição em prol de algo que o cineasta julga essencial), a cena do suicídio de François (Louis Garrel) seria equivalente à forma como Mizoguchi encenava a morte, tamanha a serenidade dos planos (sobretudo o da janela aberta). Elogio maior não poderia existir.

Luiz Carlos Oliveira Jr.