DEIXA ELA ENTRAR
Tomas Alfredson, Låt den rätte komma in, Suécia, 2007

Deixa Ela Entrar é um filme pautado pelo binômio aceitação-rejeição. Se o vampiro é um outro da humanidade, que rasteja pelas sombras, que deve mover-se subrepticiamente ali onde nossa visão é precária, seu eventual pacto com o homem deve se dar nas franjas da sociedade. Neste sentido, a aproximação de Eli a Oskar é a aproximação entre dois párias. A aceitação do diferente só pode se dar de forma completa por um também diferente. E este afastamento de uma coletividade instituída constitui menos um embate com o entorno do que um embate consigo mesmo. Trata-se de um problema de sangue. Aquele com sangue ruim deve deixar os seus.

Oskar interessa-se espontaneamente por assassinatos e evidências escabrosas de gestos humanos no limite da humanidade. Sua alienação escolar talvez seja, portanto, mais derivada de seus impulsos interiores do que do bullying de que é vítima. Impulsos que se traduzem na capacidade de performar um ato violento de pura intensidade. Diferentemente da covardia de seus colegas, que armam-se em grupo e utilizam-se de subterfúgios para intimidá-lo, Oskar é capaz de gestos estritamente aniquiladores. Gestos que o tornam hábil a ser o sucessor do “pai” de Eli e provê-la dali em diante.

A vampira, por sua vez, é regida por suas necessidades vitais, que mal consegue administrar. Seu esforço consiste em sublimar sua condição: não expandir sua raça (ela mata suas vítimas para que não dêem origem a novos vampiros) e ser capaz de desenvolver uma convivência afetiva com um humano, transcendendo suas próprias limitações. Ovelha desgarrada, Eli sente a dor da morte e o peso de seu destino. Destino-fardo: de ter que exterminar para continuar viva, de ter que viver para sempre, de ter que encontrar alguém para amar e, ao mesmo tempo, condená-lo a uma vida subserviente e criminosa.

A busca por uma moralidade impossível atravessa Deixa Ela Entrar. A aquiescência de um “mal necessário” paira por sobre a inevitabilidade de se fazerem escolhas. A justiça, que deveria estar do lado da vida, passa a obedecer a desígnios subterrâneos. Plano a plano, a narrativa nos enreda numa lógica inelutável, em que os parâmetros externos encontram-se em suspensão. Se há beleza no relacionamento pré-adolescente dos dois personagens, ou se há fragilidade e ingenuidade em sua delicadeza infantil, é na medida em que a origem do afeto em questão afina-se com uma brutalidade milenar que corre nos interstícios da sociedade.

O homem montou cidades e governos para controlar a selvageria que poderia ameaçar sua soberania; mas no momento em que a selvageria encontra caminhos seguros nos quais circular, os caminhos de uma soberania da ordem perfeita e excludente, torna-se preciso reencontrar o “bom” gesto violento. Ao trabalhar uma tradição de gênero por vias absolutamente singulares, Tomas Alfredson afronta uma organização social inabalável e um cinema equilibrado com uma violência “justa” e “grosseira”. Ao fim, resta o gosto ruim na boca, a amargura de ser um eterno fugitivo, esgueirando-se pelas áreas de penumbra, condenado a lutar por um espaço a habitar.


Tatiana Monassa