NOITE E DIA
Hong Sang-Soo, Bam gua nat, Coréia do Sul/França, 2008

Ao invés da frugal música de acompanhamento à qual já estávamos habituados em seus filmes, ouvimos sons da sétima sinfonia de Beethoven no início de Noite e Dia. Grandiloqüência de Hong Sang-Soo? Guinada do discurso menor constante em seus filmes – a vida filtrada pelo cotidiano, pelos encontros fortuitos, pela graça e leveza subjacentes a cada situação inusitada ou desajeitada – para uma dramaticidade maior, aquela que ele abandonou desde o final de seu primeiro filme, O Dia em Que o Porco Caiu no Poço? Nada disso. Ou melhor, digamos que em Hong Sang-Soo a partilha entre menor e maior nunca foi uma escolha absoluta por um deles, mas acima de tudo uma maneira de tratar o maior em modo menor, e vice-versa. O que aliás equivale na partilha de gêneros em seus filmes: a comédia jamais esconde uma problemática dramática muito ampla (e isso é coisa que só se pode dizer de dois ou três gênios do cinema, Lubitsch, Eustache, Chaplin) e o drama jamais se leva tão a sério a ponto de fazer esquecer que, de fato, tudo é passageiro e não devemos atribuir tanta importância às nossas idéias fixas, às nossas preocupações, a tudo que nos tortura a cabeça. Se o drama, por um lado, solidifica os códigos, a comédia decodifica e mostra o esqueleto. Daí a sensação ambígua de ao mesmo tempo desnecessidade e reverência com que saímos dos filmes de Hong: um mergulho da alma às profundezas de alguma coisa (que jamais sabemos bem definir) e uma volta à tona leve e gentil, sem lição de moral, aprendizagem ou constatação do trágico. Apenas algumas braçadas, apenas alguns dias na vida de algumas pessoas interessantes e um sentimento de ciclo terminado, sempre provisoriamente.

Noite e Dia deixa a melodia singela por Beethoven, deixa a Coréia do Sul pela França, deixa os personagens que trabalham em cinema por pintores e estudantes de artes plásticas, mas não abandona em nada seus procedimentos costumeiros. Eles voltam aqui com uma constância cativante: os reenquadramentos com zoom in/out iniciados em Conto de Cinema, as panorâmicas precisas (talvez jamais tão precisas e investigativas quanto aqui), a forte caracterização sentimental de seus personagens msaculinos obsessivos e das mulheres que o rodeiam, o registro em modo cotidiano. Aqui, é em forma de diário, narrado em off pelo protagonista, Kim Sung-Nam, um pintor que foge da Coréia para a França porque está prestes a ser preso por ter fumado maconha. Sem planos, dinheiro ou muitos conhecidos, ele vive em errância passeando, encontrando com pessoas, comprando cigarros e ligando para a esposa que ficou na Coréia. Um personagem entregue a situações casuais, ou seja, o perfeito personagem de Hong Sang-Soo. Naturalmente, ele há de se encontrar com algumas mulheres, dar atenção a algumas que não o cativam e ser cativado por outras a quem ele não da atenção: uma ex-namorada que ele não reconhece mais, a amiga de um amigo com quem ele vai no museu ver Courbet, uma estudante de artes linda e interesseira, e por fim sua própria esposa. E, claro, a partir desse restrito universo de personagens ele vai tirar essas situações que tanto nos surpreendem (pela meticulosidade, pela verdade, pela delicada percepção das ambigüidades do comportamento humano): dar a mão a um homem para fazer ciúmes a uma outra, ficar atônito diante de um corpo feminino dormindo e beijar-lhe o pé, fazer um comentário corriqueiro e levá-lo às últimas conseqüências por puro orgulho e bebedeira, passar a querer ficar com alguém que até então era repelido sistematicamente, as múltiplas e pequenas perfídias e mentiras, as causalidades falhadas e as presunções equivocadas com que vivemos diariamente no convívio com os outros.

Esses outros, no entanto, não são necessariamente o inferno. Se, por um lado, a comunicação entre os seres é impossível – TODO o cinema de Hong Sang-Soo se faz nos déficits de comunicação, informação e poder entre os personagens –, ela é ao mesmo tempo o inevitável, já que não resta opção além de viver entre os outros (excetuando os personagens de Cao Guimarães). Tampouco paraíso, o mundo de Hong é bem um purgatório encarado como parque de diversões. Daí a necessidade do espelhamento, em Noite e Dia tão fragmentado e fugindo dos binômios costumeiros (apesar, ironicamente, do título): duas vezes visita ao museu (com quadros diferentes), duas vezes o mesmo trabalho de arte, duas vezes gravidez (em ambos os casos, um é falso). Repetições como reiterações de temas, de situações, dos automatismos com que vivemos. Os espelhamentos e as repetições, mais do que estratégias narrativas, são para Hong instrumento para perspectivar e analisar o comportamento humano, seu objetivo último e bem mais precioso. Uma análise que, no entanto, não se fecha numa clínica exasperante como em Imamura, em Chabrol, em Fassbinder. Sua totalidade não é fechada, é aberta, como a fluidez de seus enquadramentos e a inscrição que seus planos preferidos, os de conjunto, fazem dos personagens no meio em que habitam (o plano conjunto, aprendemos na escola, é aquele que dá igual atenção ao homem e ao espaço físico em que ele está, sem ênfase maior na ação ou na descrição). Em Noite e Dia, o tom de diário é a desculpa preferida para uma narrativa que não precisa se amarrar totalmente, que aliás lucra muito em deixar alguns pontos sem nó e vários personagens pelo caminho.

Se há uma novidade flagrante no cinema de Hong Sang-Soo em Noite e Dia, é a utilização do corpo de seu protagonista como objeto de comicidade. O ator Kim Yeung-Ho representa um personagem que obviamente é corpulento demais para suas incertezas, e de reações lentas demais para os momentos que vive. Essa pequena diferença já opera algumas mudanças significativas, já que sua vulnerabilidade às situações com as mulheres não corresponde ao presumido índice visual. O fato de que várias coisas casuais se correspondem – coincidências, repetições – torna ainda mais gritante a dificuldade de correspondência entre os seres. Mesmo quando um casal se forma em aparente igualdade de sentimentos e uma estabilidade se cria, surge uma ocorrência que obriga a um novo equilíbrio – no caso, um radical, a volta à Coréia e à esposa legítima. Fato curioso, Hong Sang-Soo é talvez o cineasta de toda a história do cinema que filma mais o cotidiano como cotidiano (com seus acasos, gestos de circunstância, coincidências), e no entanto ele por vezes se parece com uma história de ficção científica ou uma obra surrealista: um porco que bate na janela da casa de banhos, um passarinho que voa direto no corpo do personagem, um prendedor de cabelo encontrado num degrau de uma escada. Todos objetos ou situações aos quais podemos atribuir uma complicada simbologia. Ou, ao contrário, considerá-los como figuras vagas, de sentido volátil, aparecidas com seu quê de gratuidade, e que no fundo refletem simples observações de um cinema que celebra a vida através de suas virtualidades abertas e testemunha que, a despeito das óbvias limitações de percepção, conhecimento, comportamento e comunicação que temos, tudo existe e ainda consegue compreender. Noite e Dia, como toda a carreira de seu autor, concilia laconismo e eloqüência de modo fascinante.

Ruy Gardnier

 

 
 





O casal em equilíbrio estável: Noite e Dia de Hong Sang-Soo