DIA DE MOSTRA
Diário de bordo dos editores na Mostra de São Paulo

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Quarta-feira, 29 de outubro de 2008
Num ano de Festival do Rio e Mostra de São Paulo com muito poucas surpresas (destaque máximo dado a Aquele Querido Mês de Agosto nesse quesito, e a poucos outros, em menor medida), há de se atentar para o enorme interesse de um filme bizarro como Steak, dirigido pelo francês Quentin Dupieux (e que, como informa o amigo Eduardo Valente, responde na música pelo pseudônimo de Mr. Oizo), que mistura futurismo cômico, laconismo humorístico kitaniano e parasitamento terrorista dos códicos adolescentes (de filmes) americanos. Se falávamos ontem de respiração dentro de tradições desgastadas, Steak parece traduzir da melhor forma o empenho de uma nova geração – partilhado, em certa medida, por Serge Bozon e seus grupinhos em Mods e em menor medida em A França, pelos filmes mais esquemáticos (e melhores) de François Ozon – em renovar através de uma gratuidade pop e frontal alguns gêneros de predileção (comédia, filme de amigos, Joana d'Arc, melodrama etc.). O fetiche pelo figurino e pelos objetos, além da lógica de grupo, podem remeter também a Wes Anderson, mas aqui estamos em terreno distinto, mais próximo de Kitano mesmo: um humor cruel, que seria dadaísta se não fosse extremamente minucioso na forma de trabalhar a hipérbole e parodiar os grupinhos fechados, a necessidade e o conforto de estar inserido em códigos sociais estritos, os modismos no vestir e se comportar. Curiosamente, é um filme que não precisa a época diegética, mas parece um futuro moldado nos anos 80 – como aliás muito da música pop francesa de hoje, delirando em timbres de technopop 80s e shoegaze 90s, maior exemplo M83. Já no outro lado do espectro, temos Nuri Bilge Ceylan, que é um mistério. Nada fascinante, porque é o mistério de como conseguiu chegar até a posição de hoje fazendo o cinema que faz. Filma mal, dirige mal seus atores, não tem qualquer criatividade na mise en scène, deixa os planos durando infinitamente sem qualquer propósito a não ser parecer profundo e ainda por cima reitera tudo que já se fez em matéria de cinema lento que passa por "observação delicada das relações humanas" (hello, Angelopoulos). Three Monkeys poderia ser uma fábula sobre servilismo como prostituição (e a transformação de um no outro), mas prefere filmar contemplativamente rostos, ações e paisagem com predileções tão idiossincráticas quanto tolas. Os rostos tristes e as posturas cabisbaixas dos personagens poderiam até ser referência a Bresson, caso houvesse o mínimo de sistemática no processo. Mas não, é apenas "toque autoral", é o miserabilismo existencial conseguido a toques de "requinte artístico", ou seja, é o refúgio dos cultores de uma arte oficialesca e desvitalizada, porém "relevante". Sem dúvida, o aspecto mais pernicioso e de mau gosto do cinema de autor praticado hoje (e sempre, mas hoje é Ceylan o nome da vez).
Em tempo: que tal acabar com a Rain antes que a Rain acabe com o cinema? Confesso que eu me sinto ludibriado toda vez que vejo a vinheta da empresa antes dos letreiros iniciais dos filmes, pois isso vai significar uma perda de fidelidade maior do que ver o filme baixado de internet. E é o que muitos sentem e conversam, em bares, em corredores de salas entre um filme e outro: filme da Rain, melhor ver baixado. O teste foi feito com Alexandra de Sokurov e é impossível discordar. (Ruy Gardnier)

Segunda-feira, 27, e Terça-feira, 28 de outubro de 2008
Como escapar (ou não) das fôrmas do cinema – Natural que, uma vez fecundado o terreno, haja uma instalação, uma transformação do solo indesbravado numa economia metódica, ou, mais ainda, numa reprodução algo mecânica de códigos. Talvez funcione para a agricultura, mas para a arte esse tipo de processo é um bocado questionável, quando não perigoso. Deixar assentar, na arte, costuma significar a institucionalização dos procedimentos e a criação de uma placidez que em geral destrói o gesto artístico. Daí a importância, senão da eterna reinvenção (o que algusn gênios conseguem mas que seria impossível pedir de todos), ao menos de uma relação vigorosa com seu assunto, com suas formas, uma tensão na relação com o processo criativo. Em geral, quando percebemos isso, é que separamos o artista do artesão, o homem com uma visão do talentoso e rotineiro repetidor de formas (ainda que repetir talentosamente as formas seja algo digno de respeito). Aos filmes: Khamsa de Karim Dridi.  Seres entregues a si mesmo, despojamento na filmagem, toda uma herança adquirida a partir do neo-realismo e da nouvelle vague e transformada em novo modus operandi de qualquer filme que queira retratar "a realidade", ou seja, problemas sociais e políticos a partir de personagens que encarnam na pele e metaforizam o todo (as estratégias de metaforizar o grande ao pequeno variam, do personagem típico ao painel). Como veículo para discussão sobre a pobreza dos guetos ciganos e árabes em Marselha, vá lá. Mas como meio da imagem em movimento criar uma outra relação com o imaginário retratado, o filme falha clamorosamente. Ele persegue com constãncia todos os clichês possíveis de filmes com personagens desgarrados, entregues à marginalidade e ainda assim adoráveis por serem ainda crianças e com carinha de bebê (ameaçadores mas não ameaçadores). Triste destino para alguém que fez ao menos em dois filmes, Pigalle e Bye-Bye, obras com real tensão da câmera ao descobrir pessoas e lugares. Mania Akbari, já elogiada aqui como atriz em Dez e diretora em 20 Dedos, em 10+4 utiliza a câmera e o princípio formal do filme de Kiarostami para realizar um processo de recuperação emocional de um câncer no seio tratado com quimioterapia. À medida que lida com o visual e com índices diretos de feminilidade (cabelos grandes, seios), o conceito do filme é preciso e a parasitagem a Dez é justificada. A forma pode se transformar em fôrma sem perder o essencial. Mas é na execução que tudo degringola. Akbari é astuciosa em algumas de suas opções, como só revelar aos poucos a natureza do câncer e mostrar as reações dos familiares e amigos à sua doença, mas no momento que o filme se fecha, não aparece nenhuma clarividência que liga todas as partes e as transforma num todo redefinidor – o que fazia boa parte da grandeza de Dez. 10+4, por sua vez, mais lembra uma videoterapia sem uma estrutura que lhe garanta um interesse maior. E aí temos o caso de Desplechin. Pode-se dizer que talvez seja o realizador mais incomodado com uma certa herança do cinema de sua terra e alguém que tenta dispor de todos os modelos para preenchê-lo com nova respiração (o que o coloca, em certa medida, a total distância de Olivier Assayas, cada vez mais tragado pelo cinema francês canônico, bom – Techiné – ou ruim – a qualité française). Esse desejo de fugir da tradição o leva a experimentar muitas coisas – coisas demais, até. Assim, Um Conto de Natal é uma experiência tão entusiasmante quanto irregular de fragmentação do conceito e da forma, decidindo ad hoc como filmar e pôr som em cada cena sem aparentemente pensar na coerência do todo. É uma bravata que nem sempre dá certo, mas cuja consistência (ainda que no errático) e ousadia sem dúvida merecem elogios. Fora os atores, soberbos. Mas isso é outro papo. Arnaud Desplechin, ainda que não se admire completamente seus últimos filmes, representa como poucos um dos dilemas principais do cinema feito hoje. (Ruy Gardnier)

Sábado, 25 de outubro de 2008
Fazer o filme que está na cabeça – É claro que ninguém concorda que isso é ruim. É aliás, há séculos, o cavalo de batalha de críticos e entusiastas que pedem que o artista se liberte das amarras do gosto comum, do sucesso fácil, das exigências dos produtores e do mercado. O que não impede que, diante de uma obra, o artista tenha ficado tão aproximado de seu material, ou tenha tido tanta coisa para dizer, ou ainda queira dar vazão a muito ao mesmo tempo, que a obra desanda. É chato ver isso sobretudo quando o talento do cineasta é evidente, mas que ele se deixa levar pelos excessos, ou não percebe quais são suas forças e suas fraquezas. Exemplo maior da 32ª Mostra, até agora: José Eduardo Belmonte e Se Nada Mais Der Certo. Curta-metragista dos mais significativos dos anos 90, sua carreira em longa até agora (ao menos os que pudemos ver) carrega filmes com altos e baixos, belos momentos seguidos de clichês ou facilidades incômodas. Belmonte sabe filmar, sabe retirar visceralidade e excelentes interpretações de seus atores (Cauã Reymond está excelente como protagonista, por exemplo). Sempre quando o filme está disposto a mostrar seus personagens em ação, o filme é impactante e belo. Quando, ao contrário, provoca momentos "poéticos" com vozes em off ou personagens sozinhos (João Miguel sofrendo com revólver em topo de prédio), ou ainda quando coloca pensamentos filosóficos na boca de seus personagens – repetidos à exaustão, enésima variação do "choose life" de Trainspotting ou do discurso de Clube da Luta –, o filme incorre na mesmice e na falta de tato. Claro está que Belmonte quer exercitar seu lado reflexivo, dosar o andamento da história com outros pensamentos e idéias, mas até agora não conseguiu achar o diapasão correto: seu lirismo é forçado e sem imaginação (poesias em off, imagens de Super 8), suas idéias sobre o mundo cão um tanto tolas e posudas (ainda que se possa concordar com elas). Mas quando se põe a filmar personagens instáveis, cheios de força e sem destino certo, Belmonte faz gol de placa. Não são só esses problemas – há, entre outros, uma certa falta de jeito em levar tantas linhas de tensão narrativa, por exemplo –, e Se Nada Mais Der Certo é sem dúvida um dos mais interessantes filmes brasileiros surgidos nesse ano, mas a gente sai com a impressão que o cineasta poderia ter feito um grande filme quando fez só um bom, ou até muito bom filme. Caso semelhante, em outra escala, é o de Jacques Doillon. O legal de acompanhar sua carreira é que ele é um fio desencapado. A cada momento está fazendo uma coisa diferente. O que é interessante, mas não necessariamente bom. Em O Primeiro a Chegar, utiliza uma premissa estapafúrdia para estabelecer o que realmente interessa ao filme, uma certa relação de personagens e, sobretudo, de atores. É o que guia o filme, uma dinâmica cênica de gestos e movimentos nada especial mas que imprime certa pulsação em uma ocasião ou outra. Mas o filme vaga sempre à deriva, quase um filme do Bertrand Blier, e em diversos momentos sentimos uma mão muito forte do diretor colocando pensamentos nas bocas de seus personagens ou criando encontros gratuitos e entediantes entre personagens ("Ah, não, ela de novo com ele não", é um pensamento que surge um punhado de vezes assistindo ao filme, ainda que o ela e o ele variem). É a graça do filmar por filmar, que se por vezes constrói grandes sopros de liberdade de criação, em outros é apenas desculpa para prender o filme a outros códigos e/ou procedimentos que dão tudo menos o frisson da criatividade e do gesto criador. (Ruy Gardnier)  

Quinta-feira, 23 de outubro de 2008
De piadinha de bar a texto, todo mundo fala das semelhanças de 24 City, mais novo filme de Jia Zhang-Ke, com Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho. Parece, no entanto, que não perceberam direito a função exercida pela mistura de depoimentos "reais" com depoimentos encenados por atores. No filme de Coutinho, o interesse era atentar para a idéia de performance, testemunhar o "documento" que é a ficção (e o processo de criá-la, acertando ou errando). O ilusionismo, em todo caso, é apenas a parte superficial do processo, e o "desmascaramento" também. Para Jia, é o exato oposto. Quando coloca atores encenando depoimentos como pessoas que não são, ele atenta ao contrário para como a ficção é, sim, documento de alguma coisa, ou de muitas ao mesmo tempo. No caso de Jia Zhang-Ke, sabemos que  ele constrói seus filmes à maneira do Rossellini dos anos 40 e 50, com personagens criados pelas circunstâncias sociais e culturais das modificações na sociedade chinesa, e talhados a partir da exigência de efetivar através de seu percurso um olhar sobre a China de hoje e do passado recente. Se há um filme que vem à mente o tempo inteiro assistindo a 24 City, é Além dos Trilhos, de Wang Bing. Aliás, em todas as cenas de destruição do parque industrial, das suntuosas salas de pé direito altíssimo totalmente vazias, Jia parece fazer apenas um desdobramento daquilo que Wang fez. Não que isso signifique uma capitulação estética ou um descaminho. Jia Zhang-Ke está lá em seus travellings laterais especulativos, em seus flagrantes da vida acontecendo, e principalmente no painel de depoimentos que ele constrói a partir das tensões sociais e culturais criadas a partir da construção de um bairro supermoderno nos escombros de uma antiga fábrica obsoleta. Não é um filme da envergadura de um Still Life, de um Plataforma, de um O Mundo. É, ainda assim, uma intensa experiência de cinema que remete à famosa idéia de que o cinema é a arte que registra a morte em ação. Vistos também: Terra Firme Sob os Nossos Pés, cretino documentário sobre o Tsunami sem interesse cinematográfico e que só se recomenda aos fissurados pelo assunto, e o belo Patti Smith – Sonho de Vida (que alguém, sabe-se lá por que diabos, "traduziu" como Patty – mas se no Masp Matisse aparece como "Henry", pourquoi pas?), tão delicado, vigoroso e agitador quanto a obras musical da cantora. Mas isso a gente deixa pra crítica. (Ruy Gardnier)

Quarta-feira, 22 de outubro de 2008
Fazia dez anos que eu não via Fanny e Alexander. Não lembrava de tudo, portanto algumas imagens me atingiram como se voltassem a ser inéditas (revisão como revelação). Hoje, assumindo o risco de fazer afirmações ainda sob o impacto da projeção, diria que é o melhor filme de Bergman que já vi. É o acúmulo e a superação (talvez não seja essa a palavra, superação, porque o filme não ultrapassa uma coisa para atingir outra, apenas cristaliza uma forma no que ela possui de mais essencial e belo) do que havia de mais vigoroso em filmes como Cenas de um Casamento, Sonata de Outono, Gritos e Sussurros  e também Morangos Silvestres, O Sétimo Selo. Sem falar que é seu melhor trabalho com a cor (no início, Sven Nykvist combina o vermelho de Tiziano à neve de Bruegel). Assim como Hitchcock, Resnais, Welles e alguns outros prestidigitadores, Bergman compreende a vida por meio do artifício. Só que isso não é uma forma de se distanciar do mundo e se trancar na imaginação; é antes uma ferramenta de conhecimento sensível. A mise en scène de Bergman em Fanny e Alexander se faz presente em tudo: não devemos procurá-la somente no quadro, nos movimentos, na angulação, na distância com o ator etc, mas também nos mínimos gestos, nas roupas, no cenário, na quantidade de velas acesas dentro de um cômodo. O mestre das marionetes está mais atento que nunca, e o resultado é uma multiplicação da carga emocional do filme atingida exatamente pelo analitismo da técnica. Para chegar à fluidez e ao "natural", Bergman precisa passar antes pela análise, pelo cálculo, pelo método. Tarefa difícil. Em inúmeros planos podemos sentir a presença austera do teatro, da pintura, da ação dramática atomizada e estudada, da posse do diretor sobre os personagens. Mas quando tudo isso se encaixa, Bergman desperta as reações mais instintivas e emotivas nos espectadores – como se fizesse um filme de terror (o que Fanny e Alexander, aliás, não deixa de ser).
(Luiz Carlos Oliveira Jr.) 

Terça-feira, 21 de outubro de 2008
Perseguição infinita, amizade fraternal, o risco iminente da morte criando laços profundos entre os personagens. Estes seriam alguns dos elementos narrativos que ligam Segurando as Pontas ao filme anterior de David Gordon Green, Contracorrente. No campo formal, uma depuração singular dos gêneros, que retém destes apenas o essencial, para embarcar numa montanha-russa de fôlego ininterrupto. De fato, é admirável a habilidade de Green em desdobrar situações indefinidamente e prolongar tensões ali onde nem se supunha que elas existissem. Segurando as Pontas é uma comédia sem parâmetros, cujas piadas se atropelam numa velocidade que desbanca qualquer organização de cena. Por vezes nos perguntamos como aquilo tudo pôde ser filmado, uma vez que a verdade dos atores parece não supor interrupções, marcas, ou diálogos bem-escritos. Na outra ponta disto que poderia ser chamado de um estilo autoral “dissimulado”, teríamos o cinema de Antonio Campos: mise en scène que grita sua originalidade e singularidade a cada plano. É preciso fazer o grande esforço de afastar todas as afetações de linguagem do filme para buscar sua real proposição cinematográfica. A tarefa é árdua e não garante resultados. A pergunta é: à parte os comentários sobre um determinado estado de coisas da sociedade americana (conseqüências do acesso indiscriminado a todo tipo de conteúdo audiovisual pela internet, hipocrisia conservadora das instituições, drogas disseminadas entre adolescentes, ausência de parâmetros morais) e o deslocamento sistemático (e até programático) da pulsão do olhar, onde está o desejo de cinema de Campos? Pois a frieza extrema de suas proposições visuais serve a estimular incessantemente o pensamento e nada mais. Seria este uma espécie de ápice masturbatório do cinema intelectual? Ao fim de Depois da Escola, nos perguntamos: qual a verdade de mundo do filme? Em outras palavras: que universo é posto em obra nas imagens, com o qual poderíamos nos relacionar e que traria alguma articulação de sentido sobre uma dada realidade? A resposta talvez seja: nenhum. O esforço supremo de reflexão proposto por Campos cria um estado de consciência vigilante (a boa consciência do homem contemporâneo?) sobre cada imagem que desloca a potência criativa para o comentário de impacto (desarticulado em si mesmo, diga-se de passagem). Os enquadramentos descentralizados e as lentas panorâmicas carregam a idéia da câmera que chega tarde demais aos acontecimentos que ela deveria fazer ver com clareza, em oposição ao imediato das imagens pobres de câmeras de celulares e dos vídeos em geral que pipocam na tela de computador do personagem. Mas, então, o quê se vê em Depois da Escola? Não muita coisa na verdade. Existe um vazio fundamental em tudo que Antonio Campos filma que não é o vazio do fora de campo que se suporia evidenciado pelo uso expressivo do recorte operado pelo quadro (seja ele um fora de campo ativo, seja ele da ordem do insondável). Seria este um vazio de alma? (Tatiana Monassa)

Domingo, 19, e Segunda-feira, 20 de outubro de 2008
Dois figurões – Coppola com O Poderoso Chefão e Ingmar Bergman com uma retrospectiva de alguns de seus filmes menos conhecidos (além de um ou outro medalhão). Ocasião para voltar sobre a obra de dois dos diretores de repercussão mais unânime para certas faixas de público e crítica, e ao mesmo tempo controversos para outros segmentos, em particular os defensores mais ferrenhos da política dos autores (entre os quais, até segunda ordem, a Contracampo está inserida). São duas carreiras muito grandes, e nos dois casos repletas de filmes desiguais, indo da obra-prima ao abacaxi com freqüência. Que exista um tanto de má vontade na acolhida desses cineastas, me parece algo que acontece meio naturalmente com todo mundo que começa a fazer um sucesso estrondoso fora de um certo mundinho. Mas que, ao mesmo tempo, suas obras sejam vistas sempre com a condescendência de quem vislumbra sempre o trabalho de um mestre em máxima potência, é algo que soa um tanto exagerado. Então, Coppola e O Poderoso Chefão. Sem dúvida, um dos grandes e mais influentes filmes dos anos 70, um marco de uma carreira e de uma época. Pouco a adicionar: as cenas na Itália permanecem de uma beleza e de uma sensualdiade estonteantes, o ritmo perfeito para contrabalançar o universo imprevisível da matança indiscriminada na América do pós-guerra e as lutas entre famílias pelo controle da máfia. Um grande filme, com tudo que em geral se pede deles: personagens cativantes, agilidade suprema da narrativa, atuações extraordinárias, carisma, imagens exuberantes etc. Visto em versão restaurada quase quarenta anos depois de sua produção, em alguns casos o filme parece pedir mais tempo para certas cenas acontecerem. Algumas fusões ou cortes secos, sobretudo na hora final do filme, nos jogam muito rápido para fora de uma cena que ainda poderia render alguma coisa, ou simplesmente o ritmo acelera mais do que vinha construindo. É claro que, sobretudo sendo um filme de indústria, é difícil pedir que um filme de três horas tenha mais do que isso. Mas uma correria menor na parte final do filme equilibraria melhor a dinâmica entre retrato de personagem e ação dramática. Dito isso, inúmeras cenas são de antologia, pura e simplesmente. Além do idílio italiano, fico com outras duas: a badalada cena da arma no banheiro e o momento final, com Al Pacino mentindo friamente a sua esposa, enfim tornado um Don, a câmera movendo-se em dolly out emoldurando-o com a porta do aposento. Frio glacial. Agora Bergman em três tempos, na Sala Cinemateca (aliás, muito estranha escolha da Mostra de encher a Cinemateca de Bergmans e Okamotos, ao contrário de fazê-los circular por todas as salas, como era de costume). Primeiro, Chove Sobre Nosso Amor (1946), segundo longa-metragem do diretor e certamente um que não entrará para a história. Drama algo entre o charmoso e o bobo, o filme tenta avançar algumas questões que depois seriam trabalhadas em forma total (em especial em Monika e o Desejo), o amor arrebatador, o casal visto como unidade contra uma comunidade que lhe faz forte oposição, etc. Em alguns momentos, o filme vira comédia desajeitada, personagens dão guinadas incríveis e a coisa toda fica meio sem pé nem cabeça. Mas, pasmem, é um filme de Bergman generoso com seus personagens. De uma generosidade até piegas, mas simpática. Em seguida um filme mais ambicioso, Prisão (1949), já totalmente imbuído do existencialismo pelo qual seu cinema será mais conhecido e elogiado nos anos 50 e 60. Uma forma arrojada, com histórias paralelas e créditos em momento já bem avançado do filme, Prisão parece um pouco uma tentativa de digerir o cinema de Orson Welles (ao menos acaba igualzinho Cidadão Kane) e sua tese é que a individualidade de cada um é sua própria prisão. Dentro da obra de Bergman, o filme é um dos que melhor dosa questionamento com ação dramática, narrando a história de um improvável casal que surge entre uma prostituta e um roteirista de cinema. É ainda, alguns diriam, um Bergman que não se assoberbou com sua profundidade. Não sei se concordo com isso, pois alguns Bergman assoberbados contam entre os seus melhores (O Silêncio, Persona), mas vendo A Hora do Lobo é difícil discordar que Bergman simbolista é quase sempre um artista desastrado, que atinge seu espectador com pegadas de elefante. Bergman pós-Persona parece ser uma figura que tenta desesperadamente dialogar com os novos cinemas (a ponto de roubar idéias de Godard em A Paixão de Ana, por exemplo), e seu cinema sofre um pouco com isso. Ele tem mais de Strindberg e Ibsen do que de Artaud e Beckett, e seu cinema se ressente muito disso quando ele não percebe que está saindo do registro que domina. A Hora do Lobo é como um Persona descontrolado e ainda mais auto-indulgente. Um filme de excessos, que pode até guardar momentos de grande beleza, mas que parece mais interessado nos efeitos de espanto e choque que cria do que efetivamente no drama e na cena. Balanço final? Nenhum. São cineastas que se vai discutir pra sempre (Ruy Gardnier)

Sábado, 18 de outubro de 2008

Que cinema a defender? O cinema das formas dosadas, discretas, simples e rigorosas de Albert Serra com seu belíssimo O Canto dos Pássaros, ou as expressões aberrantes, desregradas e até exibicionistas de Gomorra, de Matteo Garrone? Mas, pensando melhor, por que exercer distinção semelhante, e preferir definitivamente uma pela outra? Existem as críticas empenhadas em carregar algumas bandeiras, criar um ideal artístico e defender as obras que se aproximam dessa idéia apolínea, dessa forma que já está na cabeça e da qual os filmes são apenas manifestações parciais e secundárias. Contracampo, ao contrário, sempre optou e propôs antes de tudo por uma abertura que fosse buscar o cinema ali onde ele fosse forte, cativante, onde ele desenvolvesse propostas visuais, narrativas, temáticas que fizessem com que a imagem cinematográfica friccionasse o mundo e lhe trouxesse beleza e vivacidade. Não um ecletismo, uma defesa sem critérios de todas as formas, mas principalmente a idéia de um bem-vindo desconhecimento prévio de como o cinema pode nos afetar e maravilhar, e de acompanhá-lo ali onde ele é excitante, criativo, onde ele é movimento. Sob esse aspecto, a partilha de clássico e moderno ou contemporâneo não faz muito sentido (se a crítica for apenas um carimbador de "estatutos de modernidade", ela deixa de ter qualquer interesse): o que importa é como o cineasta cria operações em que transfigura imagem e som para criar uma expressão, e saber em que medida essa expressão é forte (o que nunca é uma ciência positiva, mas que é toda a graça da crítica). Tomar a defesa de uma forma de fazer em detrimento de outra pode até ser saudável em certos momentos, mas arrisca inserir o crítico numa placidez de olhar ("só gosto daquilo que é parecido comigo") extremamente empobrecedora das percepções de cada um, da crítica e do cinema como um todo. Aos filmes: Gomorra certamente não é uma obra de arte monumental, apesar de querer ser muito, mas utiliza processos de dramatização muito interessantes na forma de dar carne e individualidade, ou seja, transformar em personagens, a todas as tensões inerentes à convivência cotidiana com o tráfico, a máfia: medo, glória, orgulho, indiscernibilidade entre caminho certo e caminho errado. Talvez o maior elogio ao filme seja dizer que ele escapa das facilidades dos filmes-painel, em deixar as trajetórias fragmentadas, em interessar-se mais pelo desenvolvimento das situações do que pelo entrecruzamento e pelos mecanismos de roteiro. O Canto dos Pássaros está em outro registro, completamente. A graça do cinema de Albert Serra, ao menos os dois filmes seus que pudemos ver, consiste em apropriar-se de uma história conhecida (Dom Quixote, os três reis magos) e aplicar a ela uma irreverência absoluta, que transforma-se em embevecimento pela simplicidade do gesto e pela leveza suprema do ritmo (oh, La Tour). Poucas vezes no cinema recente veremos sons tão delicadamente passeando por nossos ouvidos, um escuro tão doce que confunde pessoas e paisagem numa harmonia sutil e parcimoniosa. Entre macro e micro, entre clássico e contemporâneo (a notar que os dois filmes fazem partilhas bem diferentes de ambos registros e modelos estéticos), o erro não é escolher o errado, o erro é ter que escolher. (Ruy Gardnier)

Sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Inevitável que esta seja não uma primeira observação sobre um primeiro dia de mostra, mas a continuação, a parte 2 de alguns questionamentos iniciados no diário do Festival do Rio. Certos temas e procedimentos que vemos se repetirem, de filme a filme, certos tiques, certa forma de utilizar os elementos expressivos do cinema de forma a entrar na escolinha do que há de mais "de ponta" no cinema. Claro está que não sou o primeiro a constatar que muito do que se chama hoje de "cinema de autor" entrou num circuito auto-reprodutivo e formulaico que dá raiva, por ao mesmo tempo posar como arte e não dar quaisquer sinais de vitalidade ou ousadia, coisas que geralmente se pede dela. Ou não? Dois filmes vistos hoje, sem dúvida interessantes e dignos de serem vistos, ajudam um pouco a levar o problema adiante. Primeiro filme visto na 32ª Mostra, Tulpan, filme do Cazaquistão, vencedor do Un Certain Regard do Festival de Cannes. Começa muito como Camelos Também Choram, aquele registro etnográfico simpático, aquela ingenuidade graciosa e uma certa prudência no uso mais desabusado do exotismo (mas deixando ainda um quê, mesmo assim). É um filme com algumas cenas fortes, mas em outras fica claro que houve uma tentativa de macaquear procedimentos retóricos e visuais dos genéricos filmes de arte. Um certo fetiche de uma história esburacada, lacônica, aberta. O título, por exemplo, diz respeito a uma personagem que jamais aparece. Os personagens são capazes de mudar de rumo a todo momento, menos porque eles são imprevisíveis do que pela falta de interesse do filme em esmiuçar qualquer problema dramático com maior apuro. Eles existem mais como figuras que cativam pela doçura e peculiaridade – crianças, personagens secundários maluquetes, etc. E há, claro, os momentos de paisagem, o pó que sobe, os planos contemplativos. Tudo muito by the book, muito elegante como papai mandou. Não é nem que falte ao diretor Sergey Dvortsevoy talento: a ausência gritante é uma sensibilidade que singularize esse repertório adquirido de "cinema contemporâneo" em algo com contornos próprios, com idéias e imagens com maior personalidade e menos esse senso de unanimismo fofo que parece brotar de certas cenas do filme. Já O Silêncio de Lorna, dos Dardenne, evoca questão diferente, mas referente à mesma problemática. Pode-se argumentar que OK, foram eles que instituíram esses cortes bruscos, essas elipses que nos fazem o tempo inteiro supor o que aconteceu entre as seqüências, esse sentimento vertiginoso de instalar o espectador nas ações já acontecendo. Não é nem questão de se colocar dúvidas a respeito do estilo transformado em fôrma, mas acima de tudo se isso não impõe certas facilidades à evolução narrativa e à construção dos personagens que diminui a força do filme ao tornar previsíveis as ações dos personagens e as mudanças da trama. O filme tem o mérito de não ser tão formulaico quanto o anterior, A Criança, mas em O Silêncio de Lorna vemos uma maior frouxidão de composição, no uso de diálogos para explicitar situações, na omissão de certas cenas, na forçação de certas situações dramáticas, em especial a cena de sexo. Estão cada vez mais longe daquilo que se elogiava inicialmente neles, o despojamento, a frontalidade. Ao contrário, parecem cada vez mais ciosos de opor os "sentimentos humanos" ao materialismo alienante do mundo contemporâneo. Nesse filme, diria eu, beirando as raias de um sentimentalismo piegas, sobretudo na meia hora final. Extremamente confortáveis no modelo que criaram, e que de filme a filme perde seu impacto, os irmãos Dardenne são um claro exemplo da dificuldade de se reinventar de um certo cinema "do hoje". (Ruy Gardnier)

 

 
 





Dia 29/10: Steak, de Quentin Dupieux


Dia 27-8/10: Um Conto de Natal, de Arnaud Desplechin


Dia 25/10: Se Nada Mais Der Certo, de José Eduardo Belmonte


Dia 23/10: 24 City, de Jia Zhang-Ke


Dia 22/10: Fanny e Alexander, de Ingmar Bergman


Dia 21/10: Afterschool, de Antonio Campos


Dia 20/10: Prisão, de Ingmar Bergman


Dia 19/10: O Poderoso Chefão, de Francis Ford Coppola

O Canto dos Pássaros
Dia 18/10: O Canto dos Pássaros, de Albert Serra


Dia 17/10: Tulpan, de Sergey Dvortsevoy