MILK - A VOZ DA IGUALDADE
Gus Van Sant, Milk, EUA, 2008

Naquele que talvez seja o plano mais brilhante de Milk, Sean Penn caminha numa rua escura, seguido por um vulto fora de foco. O quadro fechado; a tensão causada por aquela sombra à espreita – um possível atentado? – impregnando a extensão temporal da ação. O rosto do ator avança imerso no espaço que o contém e irradia, até uma panorâmica para a direita abrir o enquadramento e permiti-lo entrar em casa a salvo. Toda a arte de Gus Van Sant, maturada em seus últimos quatro filmes, poderia ser resumida por este plano: a narrativa orquestrada pela câmera e a relação ambígua de conflito e pertencimento entre o personagem e seu entorno tecida pela fotografia. Um indivíduo num espaço-tempo histórico dado, ou: o peso das ações de um sujeito sobre a leveza que se insinua nos gestos do cotidiano. Não seria isto que Van Sant vem filmando dedicadamente desde Gerry?

O desenrolar inicial de Milk nos orienta e desorienta em igual medida: após uma longa série de imagens de arquivo, vemos Harvey Milk registrando suas memórias numa gravação-testamento. Em seguida, somos catapultados no tempo, para um episódio aparentemente banal de sua vida pessoal, que logo se revela o real propulsor de sua carreira pública. Mas mais importante do que a linha temporal que se inicia esfacelada antes de “entrar nos eixos”, é o fato destes primeiros minutos do filme nos apresentarem um personagem fantasma, que fala, no presente da imagem, sobre o passado, sob a perspectiva de um tempo futuro (no qual seus interlocutores imaginados se situam). Sua história desenrola-se, pois, como um fluxo de consciência que mescla indistintamente suas experiências mais marcantes – de um almoço preparado pelo namorado a um grande discurso no palanque, passando pelo telefonema de um desconhecido.

Voltemos à estratégia formal que descrevi no primeiro parágrafo: entre a consciência e os acontecimentos existe um vazio. Este vazio é preenchido pelo sentimento de perigo e por uma perplexidade fundamental: por que a morte? “A morte” sendo não apenas o assassinato à espreita, que quando irrompe vem quase de lugar nenhum, ou o suicídio sem razão suficiente que o justifique, mas tudo aquilo que faz um homem viver menos do que a potência que carrega em si. A recriação personalíssima de parte da biografia de Harvey Milk representa para Van Sant muito mais do que a mera filiação a uma causa (o movimento gay) ou uma simples asserção política (a necessidade de lutar pelos direitos das minorias). O percurso do personagem tal como acompanhamos é o de um indivíduo nos anos mais intensos de sua vida, em que estar no seio de uma efervescente vivência coletiva corresponde a ocupar fundamentalmente o epicentro de um momento histórico. Colocar a História, com datas e referências concretas, no coração deste filme é, portanto, relembrar àqueles que tenham por ventura esquecido que filmar a “flutuação” de corpos no espaço sempre foi para ele uma ferramenta formal para ressaltar a gravidade a que os homens estão submetidos.

Desde a ligeireza em forma de “diário de viagem” de Mala Noche ou das memórias inconstantes de Garotos de Programa, até a densidade da movimentação em quebra-cabeças de Últimos Dias ou a abstração mental de uma violência insuportável em Paranoid Park, o diretor nunca deixou de se preocupar com a força que atrai os corpos ao chão – e que parece assombrar todo desejo de evasão e de transcendência das limitações físicas a que estamos assujeitados. A esta gravidade corresponde precisamente todo o peso da tragédia – como a ligação direta entre o assassinato de Milk e a encenação da ópera Tosca faz questão de deixar claro. A crueldade do destino e a glória de uma vida manifestando-se de forma quase indissociável: ecoando a memória de John Lennon ou Martin Luther King no inconsciente coletivo, o Harvey Milk de Gus Van Sant morre abruptamente, antes do tempo, no ápice de uma grande realização. Todas as ameaças e sentimentos de risco “plantados” ao longo do filme materializam-se subitamente em mãos conhecidas, aparentemente pelos motivos mais pessoais e insondáveis possíveis. Antes dos disparos, acompanhamos de forma familiar o assassino; percorremos com ele em steady cam os corredores do edifício. Na banda sonora, pássaros e outros ruídos de outras “dimensões”. Não há dúvidas: Elefante está tão próximo quanto sempre; Gus Van Sant segue sendo o mais político dos cineastas americanos.


Tatiana Monassa