DOUGLAS SIRK
(Palavras ao Vento e Almas Maculadas)

Maquetes da realidade

Palavras ao Vento (Written on the Wind, 1956) e Almas Maculadas (The Tarnished Angels, 1958) são dois melodramas do período áureo de Douglas Sirk, os anos iluminados compreendidos entre Magnificent Obsession (1954) e Imitation of Life (1959). São filmes cujos personagens estão enredados em maquetes sociais e vitais; o mundo representado por sua miniatura crítica. O mundo de plástico, de um lado, é a materialização da vontade de vida dos personagens – logo, poderíamos imaginá-lo fabricado, reversível. Mas, do outro lado, é esse mundo mesmo que escapa. Sirk encontra uma resistência superior, uma situação do destino irreconciliável.

Em Palavras ao Vento, o epicentro dramático é a mansão da família Hadley, composta por Kyle (Robert Stack), o filho alcoólatra e excêntrico, Marylee (Dorothy Malone), a jovem ninfomaníaca, e Jasper (Robert Keith), o pai milionário dono de uma empresa de petróleo. O filme aborda a transmissão familiar de um ponto de vista aterrorizante. Os filhos dão seqüência, para desgosto do pai, a uma cadeia de ovelhas negras começada antes pelo tio John, conforme Kyle conta a Lucy (Lauren Bacall) no passeio de avião em que tenta seduzi-la a fazer parte da família. Lucy é a nova secretária da empresa, por quem Kyle se apaixona de imediato. Ela é convidada, embora ainda não saiba, a completar a curva trágica do filme, que, já esboçada desde sempre, sentia ainda a falta de uma peça. Com Lucy, a curva se fecha. A família Hadley possui uma espécie de campo magnético. Esse campo, essa força centrípeta é, em certa medida, a área de atuação do dinheiro, que persuade, convence, protege, domina, magnetiza, corrói. Rock Hudson, nesse filme, assim como em Almas Maculadas, tem uma participação mais discreta, até secundária em alguns aspectos. Seus personagens ficam lá no meio de tudo, impotentes, atropelados pelo turbilhão dos eventos.

Em Almas Maculadas, ele é o jornalista Burke, que vai à procura de Roger Schumann (Robert Stack), herói da aviação na Primeira Guerra que agora (anos 1930) sobrevive às custas de protagonizar espetáculos de velocidade e acrobacias aéreas. LaVerne (Dorothy Malone), sua mulher, vedete dos números acrobáticos, fascina Burke.
Nesse filme encontram-se duas das melhores cenas já filmadas por Sirk. A primeira é quando o beijo de Burke e LaVerne é interrompido bruscamente pela aparição de um homem vestido com máscara de esqueleto. Essa cena, condensação da rede de culpa que perpassa o filme, ocorre exatamente na sua metade, e é como a expressão física da cicatriz interna que divide o mundo.






O beijo interrompido (Almas Maculadas)

A segunda passagem genial de Almas Maculadas é a vertiginosa seqüência da morte de Roger. A montagem alterna planos dele tentando pousar com planos de seu filho brincando num avião do parque de diversões, que fica bem ao lado de onde ele disputa sua derradeira corrida aérea. Antes de decolar, Roger pronunciara a frase fatal: “Esta é a última vez que você precisará me desejar boa sorte”. Ele fizera a LaVerne a clássica promessa de parar. Para homens como ele, que estabeleceram lá atrás um pacto com a máquina, a velocidade e o céu, uma tal promessa é como uma sentença de morte.

Vale notar o papel determinante que a cena da queda confere ao comportamento da multidão: fica bastante claro, pela decupagem e pelo off do alto-falante, que o avião de Roger não consegue pousar em terra porque a multidão histérica ocupou todos os lugares possíveis de pouso e não o deixou alternativa, a não ser cair na água e afundar.

Após a morte de Roger, um magnata se aproxima de LaVerne e tenta seduzi-la com promessas de conforto e com a garantia de um futuro para o filho. O dinheiro é novamente essa força faustiana, essa ação corruptora que evidencia o pano de fundo moral e metafísico do melodrama de Douglas Sirk. O papel de Burke, a partir de então, deverá ser o de resgatar LaVerne, fazê-la compreender a moral de sua própria história, a nobreza de sua vida ignóbil.

O complô do cenário

Os cenários de Douglas Sirk, com seus espelhos, escadarias, abajures, cortinas, quadros etc., progressiva e discretamente abandonam a função de composição de fundo, ou de mero receptáculo passivo do drama, e montam um complô visual no qual o personagem está irrefutavelmente envolvido. É uma espécie de cenografia ativa. Algo semelhante acontece em Minnelli: ora a cenografia é palco de um desentendimento inicial (dos personagens entre si e deles com o cenário) que depois se transforma num acordo, e a narrativa percorre a trajetória de conquista desse acordo (Designing Woman, The Band Wagon); ora a performance cênica está bloqueada, ninguém vai de uma posição a outra como num passe de mágica, o cenário não mais se modula ao ânimo dos personagens, há o destino pesando por intermédio de ambientes imutáveis, há um papel social preestabelecido para cada um, e que será reafirmado (Some Came Running). Minnelli também inflama os cenários para expressar, no melodrama familiar ou na comédia musical, a submissão ou a liberação do homem face ao destino. Em Sirk, no entanto, há um dado a mais, um elemento conspiratório, uma dominação silenciosa do personagem pelo cenário – este parece um organismo vivo e devorador. Sirk materializa no espaço, na cenografia, essa idéia complexa do homem submetido a um entorno, um ambiente. E a relação entre o personagem e o contexto visual da cena é tão mais convincente quanto maior for o fracasso que ela sugere.




Cenografia ativa

Sirk foi cruel como poucos cineastas souberam ser. Para mostrar a crueldade do mundo, ele esgarça a sua superfície, sua capa de proteção, sua aparência, sua imagem. É assim que ele atinge o fundo das coisas. O que vem à tona é o horror do conformismo social, o irracional do desejo, a ineficácia do dinheiro diante da fraqueza dos sentimentos. Sirk desvela uma existência intrinsecamente dolorosa e trágica em seus enredos, um caráter insignificante e efêmero de todos os códigos e convenções sociais. Em Palavras ao Vento, enquanto finge adicionar camadas e mais camadas de vestimenta, de maquiagem, Sirk está no fim das contas desnudando as enervações da mansão Hadley. A sobre-estilização das imagens, o uso e abuso de filtros não forja uma proteção entre o filme e o espectador, mas antes o suga com ainda mais vigor em direção ao abismo. Toda a descrição sociológica e todo o detalhamento cenográfico se tornam estruturantes em relação ao estado malévolo das coisas. O carrossel da sociedade, o status, o dinheiro, a sarjeta, o jogo das aparências no meio social, o sexo e o amor como troca/negociação, tudo isso tem em Sirk uma função constituinte da crueldade que circula por tabela. Narrativa circular que reencontramos em Fassbinder: a crueldade em filmes como O Medo Devora a Alma e Fox and his friends cresce sob o verniz dos apartamentos burgueses, ou entre as rachaduras dos apartamentos pobres. O mundo se torna cruel na medida em que se configura como um conjunto de casas, paredes, cômodos, cortinas, escadarias, guarda-roupas, ou seja, na medida em que estabelece o figurino de A e o de B, o palco onde as relações sociais e familiares (preconceitos e injustiças inclusos) se fazem presentes.

Os personagens dos melodramas de Sirk são espíritos exaustos, consumidos pelas paixões mal resolvidas e pelo luto. Eles sofrem de uma sobrecarga. As emoções se tornam, portanto, mais dispendiosas, mais veementes, mais físicas. Como Imitation of Life repetiria depois, Palavras ao Vento é um filme despido da dimensão catártica. O desfecho é menos uma reabsorção miraculosa dos conflitos do que um golpe seco da narrativa (em Magnificent Obsession e Tudo que o Céu Permite os happy ends já não eram plenos). O lado aprisionante dessa vida compartimentada por paredes e cômodos luxuosos se confirma ao final de tudo, não pode ser mudado. É o oposto da comédia romântica Boêmio Encantador (Holiday, 1938), de George Cukor. Lá encontramos um núcleo dramático bastante parecido com o de Palavras ao Vento: um pai viúvo e milionário, duas filhas, um filho alcoólatra, uma mansão opulente e um novo indivíduo que vem se incorporar à família. O personagem do filho alcoólatra é quem melhor permite estabelecer a diferença entre os dois filmes: em Holiday, ele é ao mesmo tempo o alívio cômico e o agente reconciliador (através de seus conselhos à irmã mais nova); em Palavras ao Vento, o alcoólatra da família possui outra medida, ele nada tem de aliviante, tampouco de reconciliador, suas atitudes são o estopim dos acontecimentos inconvenientes. Holiday é uma comédia de casamento; Palavras ao Vento, um melodrama. O melodrama é esse momento em que a ficção familiar, com suas relações entre pais, filhos, irmãos, cônjuges, assim como suas heranças, suas rivalidades, tudo isso se depara com o trágico e o irreconciliável.

O final de Palavras ao Vento é implacável. O portão é fechado pelo empregado da mansão (quase um vulto no filme, diferente do papel central que a empregada de Imitation of Life teria). Lá dentro, Marylee se entrega ao choro agarrada à maquete da torre de petróleo sobre a mesa do escritório. Ela foi quem restou, após a morte do irmão e do pai e a partida de seu amor de infância. Vão-se as pessoas, vão-se os amores, e fica o patrimônio, a empresa, a casa. A mansão vazia.  





Luiz Carlos Oliveira Jr.