3º CINEOP - Mostra de cinema de ouro preto
Cobertura diária

Margem, Maya Da-Rin, Brasil, 2008
Isto É Meu e Morrerá Comigo, Fábio Carvalho, Brasil, 2007
Tomba Homem, Gibi Cardoso, Brasil, 2008


O não-saber como espaço da revelação

Na crista da onda deste novo documentário poético brasileiro, bandeira carregada, sobretudo, pelo grupo de cineastas mineiros reunidos em torno de Cao Guimarães (mas não só por eles), é interessante lembrar o quanto esta “novidade” está disposta a levar a cabo a radicalidade estilística e conceitual de sua proposta em nome do abandono absoluto de velhos dispositivos da narrativa documental, e uma cena de Andarilho, do próprio Cao, vem à cabeça. É o momento em que, depois de já termos visto e revisto, pelos ângulos mais plásticos e supostamente mais “próximos” da realidade louca daquele personagem que vive na estrada, Andarilho inventa um disfarce para a convencionalidade de sua aproximação ao protagonista. Incapaz de desfazer a distância que o aparato estético criou entre o sujeito e todo o repertório de beleza forjada que o filme armou para si, mas ainda assim desejoso de algo que escapa do puro delírio da imagem, ou seja, precisando de um depoimento, de uma cabeça-falante (transfigurada, mas ainda assim cabeça-falante), Andarilho fará suas perguntas através de um segundo caminhante, inserido em cena numa clara demonstração de substituição artificial. Este segundo personagem está ali para cumprir um papel que o documentarista interdita a si mesmo, para não macular o dispositivo, para não comprometer o ponto-de-vista poético em nome de um tantinho de prosa – e é tanto pior que a própria estrutura do filme eleve este momento a uma espécie de ápice dramatúrgico: é a primeira vez que, diante de um protagonista tão performático, a câmera não tenta ser mais espetaculosa que ele.

De fato, assumir a fragilidade política e conceitual de um ponto-de-vista, assumir uma certa miopia documental, ou seja, um olhar ontologicamente desviado de uma compreensão do todo, é algo do qual boa parte do documentário brasileiro recente parece fugir constantemente, seja em nome de um certo “respeito” pela suposta grandeza do objeto, ou simplesmente por um capricho estilístico mesmo (caso de Andarilho). Nesse sentido, Margem, de Maya Da-Rin, parece tão entregue à exposição dessas suas limitações, ao mostrar em filme como a eleição de um dispositivo pode ser tão liberadora quanto incrivelmente castradora de tudo o que escape dele, e não disfarçar sua fragilidade, sua consciência da restrição, mas, ao contrário, insistir em sempre alimentá-la positivamente. Alguns jovens realizadores cariocas (detalhe importante, tanto a juventude quanto a naturalidade, ressaltados em diversas passagens do filme) partem para a travessia do Rio Amazonas entre a tríplice fronteira de Brasil, Colômbia e Peru, num velho e enorme barco onde cabe de tudo, pedaço metonímico de todo um mundo que se quisesse explorar ali. Este mundo, ou os mal-fadados “temas”, vão aparecendo aos poucos em Margem e é natural que assim o seja: relações econômicas e trocas humanas entre países, desnacionalização do indivíduo, questões indígenas, solidão, vida dura, você escolhe.

Sobre qualquer um destes assuntos, e sobre qualquer uma das imagens e histórias que desfilarem diante de si, Margem nunca abandonará o olhar franca e abertamente estrangeiro diante de tudo aquilo. Se há alguma confusão identitária naquele povo que vive entre três culturas diferentes, para os realizadores do filme o que sobra é certeza sobre a natureza histórica de seu próprio ponto-de-vista. Não à toa, os rostos que mais veremos serão os de dois turistas japoneses que estão por ali para viver a “experiência terceiro-mundista”, treinar o espanhol que já falam com alguma fluência, repetir alguns passeios já feitos antes. Enquanto a maioria absoluta dos entrevistados peruanos, colombianos ou brasileiros é legada à voz over, com as falas nunca se casando com o rosto que as profere, os japoneses ocupam largamente a imagem. Inseridos voluntariamente num contexto que não lhes pertence, não deixam de se espantar com um certo primitivismo das relações humanas no ambiente do barco, se estranhar com o modo violento com que se tratam os animais transportados como carga ou como crianças se digladiam numa das paradas para tentar vender comida aos viajantes e, num gesto final de identificação mútua com os realizadores cariocas, saem desejando boa sorte uns para os outros, japoneses no quadro, realizadores em off, numa cena que demonstra claramente o descolamento e até mesmo um certo medo de todos ali em relação à terra nova que percorrerão. Enquanto existia o barco, existia um olhar fluído, não-direcional, identificado à própria trajetória do rio, e tudo o que era da ordem do continente, da terra, era observado com distância absoluta (a câmera nunca desce do barco, nem mesmo nas paradas) e até mesmo com algum preconceito (Margem só se chega a terra quando, durante alguns depoimentos sobre os índios da região, recorta as imagens clássicas da Comissão Rondon, feitas pelo Major Luiz Tomás Reis, justamente aquelas mais utilizadas quando se quer ilustrar explicitamente a aculturação indígena pela força branca: índios sendo vestidos, medidos por aparelhos estranhos, entre outras). Margem afirma o documentário como o lugar do desconhecimento e não está ali para “resolver está questão”, pelo contrário: sua força é tanto maior quanto mais profundo for o abismo entre a câmera e seu desejo de desvendar o que ela filma. O desconhecimento não é uma etapa de transição, mas o próprio lugar em que se funda e que condiciona a experiência do realizador.

Assim, co-habitando uma terra imaginária ao lado de Margem, Isto é Meu e Morrerá Comigo e Tomba Homem, por mais fluídos que possam parecer, uma vez que só existem a partir dos longos depoimentos de duas figuras incrivelmente articuladas – uma articulação de tom memorialista, inconstante, mas totalizadora –, não deixam de carregar um certo ranço do desejo de tudo-saber que se disfarça em não-intervenção, naquela câmera bomba-de-sucção, retirando poesia a fórceps de um mundo que vive dela sem precisar alardeá-la. No primeiro, vemos um registro inédito e nunca editado em filme do professor mineiro João Etienne Filho, figura central do movimento literário mineiro que envolveu Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Hélio Pellegrino e Otto Lara Resende. O diretor Fábio Carvalho recupera este depoimento tomado de Etienne nos anos 80 para hoje, dez anos depois de sua morte, lhe fazer uma homenagem (com toda a carga fúnebre e respeitosa de um filme que termina com uma lápide literal de seu protagonista, onde se lê numa cartela seu nome completo e data de nascimento e morte). Bastante careta e centrado exclusivamente na imagem estática de Etienne sentado num sofá falando sobre sua vida – algo que o próprio trabalho posterior da carreira de Carvalho, muito interessante, subverteria – Isto é Meu e Morrerá Comigo acaba tirando seu maior valor de uma prática simples e de carga simbólica um tanto óbvia: através de diversos re-enquadramentos da imagem de arquivo, o filme tenta mapear o corpo de Etienne numa espécie de autópsia poética, única chance de botar em movimento uma matéria que o próprio filme, em sua vontade de exposição e desvendamento, acaba por fim decretando como realmente falecida.

Tomba Homem, mesmo que apresente um personagem vivo, cujo registro é atual, contemporâneo e pulsante (muito por conta do encanto natural do protagonista, o último travesti ainda vivo da geração de Madame Satã e Cintura Fina, donde se imagina o sem-número de boas histórias que tenha a contar), também não resiste ao exercício um tanto mórbido da decupagem do corpo em pequenos pedaços isolados de matéria. Gibi Cardoso é do mesmo núcleo de Cao Guimarães, produtor de muitos de seus filmes, e faz em Tomba Homem um tipo de reportagem sentimental bastante diferente daquilo que Guimarães costuma praticar. Ao mesmo tempo, quando não tem diante de si a força verbal do protagonista, acaba investindo numa mesma cartografia de sensações já bastante conhecida e dominada, nessa poesia que não pode se anunciar como tal, que precisa fazer crer o espectador de que se trata de uma manifestação “espontânea” daquele ambiente registrado, tão espontânea como o segundo passante que Andarilho coloca em cena como seu alter ego eduardo-coutiniano.

No meio disso tudo, mesmo com todas suas simplificações e uma certa pressa e falta de cuidado (foi anunciado que se trata de um filme “sem querer”, um registro informal de uma viagem que tinha por destino a realização de um outro filme, maior, no qual Maya Da-Rin está trabalhando agora), a imagem que mais se sobressai é aquela de dois grupos de jovens entregues ao desconhecimento, turistas japoneses de um lado, cineastas cariocas de outro, em Margem, um filme que vive do não-saber, do não-investigar, que descobre na ignorância um espaço de atuação verdadeiramente instigante.

Rodrigo de Oliveira