3º CINEOP - Mostra de cinema de ouro preto
Cobertura diária

Estafeta - Luiz Paulino dos Santos, André Sampaio, Brasil, 2008

Da geração de cineastas cariocas surgidos nos anos 90, André Sampaio talvez seja o de carreira mais consistente e prolífica (só este ano já lançou dois curtas-metragens, Vida Fuleira e Tire os Óculos e Recolhe o Homem, tendo ano passado estreado no longa-metragem com seus parceiros de universidade no coletivo Conceição – Autor Bom é Autor Morto). Sua identificação – filiação até – está claramente marcada por um cinema de invenção ligado aos marginais dos anos 60 e 70, e desta forma pareceria um tanto estranho se ele voltasse agora sobre um personagem relacionado ao cinema do fim dos anos 50, filho de uma outra estética, de um outro cinema brasileiro, o velho Luiz Paulino dos Santos. As razões emocionais da existência de Estafeta o diretor revelou na apresentação do filme: Paulino foi quem primeiro tirou uma fotografia sua, logo após seu nascimento (certamente por conta da amizade entre Paulino e o pai de André Sampaio, o grande montador Severino Dadá). Reencontrando-se ao acaso, na rua, muitos anos depois, Sampaio decide então rever a história de Paulino em filme. As razões e afinidades políticas e ideológicas, no entanto, estas estão mais que explicitadas no trajeto de Estafeta e falam por si. Luiz Paulino é um destes personagens que a História esqueceu, e que o cinema e sua lógica de produção fizeram ser mais que um marginalizado do sistema, um franco enjeitado, expulso sem perdão do círculo corporativista que se criou no panorama brasileiro, sobretudo dos anos Embrafilme para cá.

Pois é aí que o nó se aperta e Estafeta ganha uma densidade e uma força incomuns. O abismo maior entre Luiz Paulino e André Sampaio não é exatamente geracional, ou mesmo estético, mas está na própria crença no cinema e na sua relação com a vida de cada um. Nos filmes anteriores de Sampaio estávamos constantemente mergulhados numa espécie de realidade transfigurada, com um pé na fantasia e o corpo inteiro no puro delírio da possibilidade de existir, pelo menos em filme, num universo paralelo onde qualquer dificuldade (econômica, sobretudo) é imediatamente vertida em imagem, impregnada de sua precariedade e, ainda assim, sobrevivente, ativa, resistente. Quando Estafeta encontra Luiz Paulino, aos 77 anos de idade e 40 de carreira cinematográfica, o velho cineasta conta que precisou se afastar do cinema “para não sucumbir” e, num depoimento emocionante, fala sobre como chegou próximo da fome, se vendo incrivelmente magro, sem força física, depois de uma série de rasteiras e boicotes declarados a seu trabalho, seja por parte da antiga estatal do cinema brasileiro ou pelo governo Collor. Paulino foi então viver sua transfiguração não em filme, mas na própria vida: se afastou do cinema e foi morar numa comunidade do Santo Daime no sul de Minas. O cinema, é claro, toma outras proporções quando literalmente se chega ao fundo do poço por ele, e, ainda assim, Paulino não abandona a produção de imagens e está lá registrando sua vida na comunidade do Daime com uma câmera de vídeo (imagens que Sampaio recupera, algumas das mais belas que Paulino já filmou).

E assim, talvez Estafeta soe como um passo obrigatoriamente mais convencional e até um tanto careta na carreira de André Sampaio, mas o respeito absoluto e até mesmo uma certa solenidade ao retratar Luiz Paulino estão fundados exatamente nessa distância: um jovem diretor que segue batalhando do jeito que pode pelo cinema no qual acredita e um velho diretor que se retirou do campo de batalhas, depois de muito lutar. Estafeta se vê envolvido num convencionalismo historiográfico em que se segue uma ordem cronológica de apresentação da biografia de Paulino, começando por seus primeiros curtas, depois seguindo com a polêmica em torno da passagem de bastão na direção de Barravento para Glauber Rocha – uma das histórias mais mal-contadas do cinema brasileiro, mas que o filme não pretende resolver, e nem poderia, uma vez que o próprio Paulino demonstra sofrer de um rancor emudecido e já bastante distanciado a respeito do assunto –, mais à frente, sua atuação política no sindicato de profissionais de cinema, a produção do filme coletivo Insônia, até o desencanto com o meio e sua retirada para a comunidade do Daime. Um convencionalismo que se torna muito pouco incômodo uma vez que se percebe que é apenas pelo acúmulo das histórias de um passado de confiança absoluta na capacidade transformadora do cinema que André Sampaio pôde encontrar o homem que hoje, mesmo com todo o peso e mal-estar que parece carregar nos ombros pela frustração de seu projeto de vida, consegue enxergar no registro caseiro e diário de sua experiência no Daime, ou de si mesmo no espelho de sua casa, aquilo que chama de “conhecimento de mim mesmo”.

Luiz Paulino dos Santos tem andado por Ouro Preto com uma camerazinha de vídeo, registrando tudo o que pode: debates, encontros, almoços entre amigos, sessões. Um vigor e um desejo pela imagem que felizmente negam a idéia de “aposentadoria” que talvez Estafeta sugira. E vendo Paulino todo desenvolto com sua camerazinha, desminto a mim mesmo quando falei dois parágrafos acima do abismo de crenças. André Sampaio e Luiz Paulino, com as décadas todas que os separam, são verdadeiros parceiros de um mesmo sonho.

Rodrigo de Oliveira

 

 






Luiz Paulino dos Santos e sua pequena câmera,
filmando tudo o que acontece em Ouro Preto