A PELE
Steven Shainberg, Fur: An Imaginary Portrait of Diane Arbus, EUA, 2006

Não são muitos os diretores americanos atuais aos quais podemos atribuir influências equilibradas e conscientes de David Lynch, sem que isso soe sarcástico ou depreciativo. Com este A Pele, Steven Shainberg talvez se confirme como este sujeito que recupera a visão sobre a vida americana como um eterno escavar sob a superfície, identificando que é nos subterrâneos dessa sociedade, e só ali, que ela se mostra de maneira mais entregue. Mas estamos longe do realismo atroz e da verdade nua-e-crua que costuma se enxergar neste tipo de operação (do marginalismo white-trash de Bubble, de Steven Soderbergh, à elegância suburbana ameaçada pelo mal do adultério e da pedofilia em Pecados Íntimos, de Todd Field, para ficarmos nos exemplos recentes). Essa andar-de-baixo aparece sempre acompanhado de um clima entre o lânguido e o desesperado, e qualquer figura pertencente ao mundo de cima só pode realmente atestar sua própria normalidade uma vez que consiga passar por todas as aventuras que o mundo submerso propõe sem se deixar marcar por ela – e, é claro, ninguém passa incólume por ali. O caminho a que Shainberg submete sua protagonista, a fotógrafa americana Diane Arbus, lembra o do protagonista de Veludo Azul: um cotidiano entediante, a descoberta casual da chave para um universo de sonho/pesadelo (aqui, um tufo de cabelos preso no encanamento, lá uma orelha humana encontrada num terreno baldio), e daí para adiante a contaminação irreversível por este outro lado da vida, onde o mistério, as aventuras francamente subversivas, e uma latência sexual absoluta, emprestam à experiência humana toda sorte de bem-vindas bizarrices, que antes disso se poderia tomar como um equívoco, atentado à sanidade ou algo assim.

O que complica, e ao mesmo tempo delicia, Steven Shainberg nesta jornada é que ele está lidando com uma figura que existiu, com uma artista em torno do qual se criou um certo culto, e que, por conta própria, já fizera em seu trabalho esse mesmo passeio de Alice no País das Maravilhas pelo submundo da América. Da história conhecida de Diane Arbus, A Pele flagra apenas os três meses decisivos em 1958, quando ela larga o pequeno estúdio de fotografia de moda que mantinha com o marido e passa a se dedicar aos seus famosos retratos da gente freak americana: anões, deficientes de toda sorte, gêmeos idênticos, nudistas, sadomasoquistas, e o que mais de estranho se pusesse à frente. Alardeando desde o início, com uma cartela explicativa, que se trata de uma história fantasiosa criada a partir daquilo que o diretor supõe ter sido a experiência interior de Arbus neste momento de transformação em sua vida, A Pele deve tão pouco à biografia da fotógrafa (algo que a crítica americana, massacrando o filme, foi incapaz de compreender) e tanto mais ao legado de sua arte. De fato, sempre que se arrisca a ser o filme do flagrante de um gênio artístico nascendo diante dos nossos olhos, A Pele fracassa entre os quilos de metáfora e toda a empostação respeitosa que, mesmo avisando se tratar de pura invenção, o filme insiste em manter. É quando tenta se conectar com essa herança de Arbus à arte americana (o próprio Lynch é um filho deste ambiente, e tantos outros artistas de maior ou menor expressão, de Andy Warhol a John Waters), e finalmente exercer essa influência, filmá-la dentro de um contexto narrativo, no fluxo de uma trama, é que Shainberg chega mais perto do retrato imaginário que propõe no título original do filme.

As grandes metáforas sociológicas e psicológicas não são, definitivamente, o forte de Shainberg. Como em seu filme anterior, Secretária (2001), a tentativa de comentar o quadro geral das situações em que seus protagonistas estão envolvidos não escapa nunca de um didatismo primário (e aqui discordo do amigo Eduardo Valente, quando elogiou Secretária, em crítica na Contracampo à época de seu lançamento, por considerá-lo um filme sobre a perversão das relações entre patrão e empregado no clima über-capitalista em que vive a América). A Pele começa, como seu filme anterior, com um pequeno prólogo totalmente fora de contexto, onde toda a carga de estranheza que o filme destilará se mostra com um quase choque ao espectador, para que este entenda desde já em que tipo de aventura está embarcando. Aqui, vemos Diane Arbus chegar a uma colônia de nudistas, com sua câmera pendurada no peito. Tão logo entre no lugar – e a decupagem das cenas faz questão de flagrar as pessoas nuas sem qualquer sensacionalismo, mas também sem qualquer preparação ou pudor – Arbus será avisada que ela também precisa se despir para poder realizar o ensaio fotográfico que deseja, e então entramos no longo flashback que é o próprio corpo do filme. Uma dica de auto-ajuda como estas pairando no ar (“sua arte só será possível uma vez que você se dispa dos seus preconceitos”), e a indicação biográfica que Arbus era filha de um famoso comerciante de casacos de pele em Nova York, e está pronto o terreno onde a ficção de A Pele vai mais longe, e também mais baixo. Tudo se resume aos pêlos (corpóreos, sobretudo), e ao que fazemos com eles. Símbolo máximo dessa obsessão, o personagem de Robert Downey Jr., Lionel, uma besta peluda tirada de Jean Cocteau, um sujeito que sofre de hipertricose, e por isso tem todo o seu corpo coberto por longos cabelos castanhos e bem-penteados. E mesmo com essa figura tão extraordinária nas mãos, Shainberg não perderá a chance de reafirmar sua metáfora do corpo-e-alma-nuas sempre que puder, seja num superclose de um fio de sombracelha aparada pela protagonista, no repentino tesão que ela passa a sentir pelos pêlos do braço do marido, logo após conhecer Lionel, ou ainda na tentativa do marido de se aproximar do novo objeto de desejo da mulher, cultivando simploriamente uma densa barba.

O que se anunciava em Secretária, e agora se confirma em A Pele é que Shainberg é, antes de qualquer coisa, um grande encenador do desejo sexual, e que é só nesse ambiente de bizarrice irrestrita que ele parece aflorar da maneira que mais interessa ao diretor (lembram-se das cenas entre Kyle MacLachlan e Isabella Rossellini, em Veludo Azul? Aquele mesmo clima, só com um pouco mais de viagem em ácido e capricho na direção de arte). Se no filme anterior o esforço maior era o de criar um ambiente de romance franco e delicado entre dois praticantes de masoquismo (explícito, no que dizia respeito à postura da câmera durante o contato sexual dos dois), o desafio aqui é tornar o jogo de sedução entre uma mulher de beleza impávida e rosto angelical e um dublê do leão de O Mágico de Oz algo não só crível, mas verdadeiramente excitante. São dignas de antologia as seqüências em que Arbus depila o corpo de Lionel, e a bela cena de sexo que se segue depois disso. Mas, em verdade, essa efervescência sexual já estava anunciada desde a primeira conversa entre os dois – e aí é preciso destacar o grande trabalho que tanto Downey Jr. como Nicole Kidman realizam aqui. Lionel, essa figura-passaporte de Diane Arbus ao universo que viria a ser próprio de sua arte, se apresenta desde o início como objeto digno de desejo, e desafia verbalmente a moça a revelar seus impulsos sexuais mais íntimos. O que sai daí é o retrato do artista enquanto um fetichista incontornável: o despertar artístico como indissociável de um despertar sexual, e por vezes francamente erótico, na relação com o objeto observado. É uma interação que precisa se anunciar, intervir, e participar daquele novo universo (o da bizarrice, no caso) – porque gosta e se sente bem ali. O quanto isto diz respeito à real transformação por quê passou a verdadeira Diane Arbus, isso só podemos mesmo supor ou fantasiar. Mas esse fetichismo certamente se manifesta na relação que Shainberg estabelece com seus dois filmes, e com tudo aquilo que eles trazem de tão renovador e desafiantes. É um longo trajeto para se afirmar, simplesmente, que sua estética se baseia num tesão incontrolável pelas cenas que deve filmar, mas, novamente, de quantos diretores americanos atuais se pode dizer que filmam com verdadeiro tesão, sem que pareçamos sarcásticos ou depreciativos?

Rodrigo de Oliveira

(DVD: Playarte)

 

 





Um jogo de sedução como nenhum outro: