WALL-E
Andrew Stanton, EUA, 2008

François Truffaut implicava com os bichos e objetos humanizados nos filmes de Albert Lamorisse. Para ele, o cavalo branco que desenvolve uma relação de amizade com a criança e o balão vermelho que segue o menino pelas ruas como um cachorrinho resultavam num artifício fácil demais para ser absolvido de um rigor crítico. Claro que na animação a humanização de bichos é algo corriqueiro, mas é quase impossível não lembrar da birra do cineasta/crítico francês ao ver as imagens de Wall-E dando a mão para Eva, a sonda encarregada de verificar se há possibilidade de vida num planeta destruído pelas toxinas do acúmulo de lixo.

Não é fácil lembrar de exemplo mais poderoso e abusado de humanização de objetos animados. Não aquela humanização cara aos politicamente corretos de plantão, que garante alguns quilos insossos de bom coração e uma nobreza de gestos e atitudes acima de qualquer noção de mundano. Mas uma humanização que deixa entrever todas as características que a compõem, o ciúme, o rancor, a avareza. Deixa entrever coisas das quais os humanos se envergonham na maioria das vezes, e esse é o segredo. Não há paternalismo desnecessário em Wall-E. A sonda Eva vem preparada para matar ao menor sinal de ameaça. É do tipo que atira para depois perguntar. Wall-E, o robozinho, realiza sua tarefa sem deixar de lado seu pendor materialista. Ele salva das sucatas que molda todos os objetos curiosos – aos olhos dele – que encontra pelo caminho. Esses são os sinais mais claros de características que seriam, digamos assim, mais negativas. Há outros, como os que ficam nas entrelinhas dos silêncios enquanto Wall-E observa Eva (que são bem mundanos, nada negativos ou socialmente edificantes), ou os que existem entre as máquinas nos tempos supostamente mortos (surpreendentemente existentes em grande número, ainda que de curta duração).

Mas se engana quem pensa que essa humanização é o que dá o tom de todo o filme. Wall-E contrapõe a humanização das máquinas à robotização dos humanos que aparecem depois de um bom tempo de projeção.  É como se o contato com os mais humanos entre os maquinários pudesse resgatar um resquício de vida no mais robótico dos humanos. Esse é o mote principal, sua razão de ser, o que o aproxima de um objetivo, o que lhe dá um sentido moral e cívico, mas em certa medida, o que o enfraquece.

Se essa humanização resvala, por diversas vezes – é necessário dizer –, no mais rameiro lugar-comum eternizado pelas diversas Disneylandias do cinema, com direito aos olhares penetrantes – até mesmo quando são pequenos círculos de neon – ou às mais erráticas atidudes, frutos não de uma programação, mas de uma reação a um estímulo (algo bem humano e preso às fórmulas da comédia romântica clássica), é inevitável constatar também que todas essas simbioses entre o que deveria ser das máquinas e está nos humanos e vice-versa constroem um estranhamento que chega bem perto de causar a aversão de crianças, ou mesmo de adultos que queriam apenas uma diversão simples para distrair suas crias por hora e meia. Wall-E se torna, de uma maneira arriscada até demais levando-se em conta a grife Pixar engolida pela grife maior e mais comportada da Disney, um potencial tiro no pé, o que as bilheterias fizeram o favor de não desmentir, nem de reiterar.

Se não temos como relevar certos esquematismos no confronto inevitável do homem com o aparato criado por ele e que o aprisionou, se não temos como fechar os olhos às piscadelas também inevitáveis ao que se poderia chamar de "filme de mensagem" – pois exigiria um esforço muito grande para driblar o que o tema carrega consigo de modo dantesco; enfim, se não podemos ignorar a sensação de déjà-vu que nos acomete depois que o estranhamento se vai, é da mesma forma imensamente difícil esquecer alguns planos que ficam tranqüilamente entre os mais belos do cinema de animação recente: o robozinho demarcando o território com seus blocos compensados de lixo, as luzes da nave formando desenhos no chão que parecem ameaçadores ao robozinho, os tons cinzentos de uma terra aniquilada, a simetria das formas pensadas nos gigantescos espaços interiores da nave Axiom... Além, claro, de uma surpreendente ausência de didatismo durante toda a primeira metade, tornando o filme antes de qualquer coisa uma brilhante representação de um estado de espírito apocalíptico e melancólico, algo como se Al Gore idealizasse a versão menos cabotina e universal de seu discurso em Uma Verdade Inconveniente. O mundo em Wall-E ainda tem solução, assim como a representação de um mundo, inerente a qualquer manifestação artística, encontra muito mais estofo do que em qualquer blockbuster que pudemos ver nestes últimos anos.


Sérgio Alpendre