O TEMPO E O LUGAR
Eduardo Escorel, Brasil, 2008

Deve haver mesmo algo de muito entusiasmante e igualmente assustador em se fazer um tipo de cinema no Brasil em cuja ponta está alguém do gênio de Eduardo Coutinho. Pai involuntário disso que rasteiramente se chama de “documentário de entrevistas”, e ao mesmo tempo grande renovador estilístico do gênero, Coutinho é uma sombra visível em boa parte dos documentários brasileiros dos últimos anos, quer como influência assumida ou como modelo a se rechaçar, ponto de partida para experiências conscientemente diferentes das que ele realiza. O fato é que, seja como benção ou como maldição, esta é uma força de cinema inegável, e se O Tempo e o Lugar surge tão frágil e inconsistente diante de nossos olhos é menos porque se arrisque a um diálogo frontal com a obra de Coutinho e mais porque parece realmente não ter apreendido nada daquele manancial de idéias que não alguns truques e dispositivos de almanaque, visíveis enquanto estratégia, mas completamente esvaziados do sentido sempre atribuído por Coutinho (ou de qualquer novo sentido que se queira emprestar a eles). E a palidez do filme se torna ainda mais embaraçosa quando se leva em conta que Eduardo Escorel é não só um parceiro de geração de Coutinho (se esperaria a imaturidade narrativa de O Tempo e o Lugar de algum cineasta iniciante, mas nunca de alguém com a experiência e o tempo de estrada de Escorel), como foi o montador de Cabra Marcado Para Morrer, pedra fundamental de um certo cinema político que atravessa a História a partir do filtro da experiência particular de um protagonista anônimo dela e, ao mesmo tempo, reflete a todo momento esta revisão do passado numa operação de aproximação no presente entre o cineasta e seu objeto e tudo o que pode surgir da explicitação desse encontro. Pois O Tempo e o Lugar quer tudo isso e nunca consegue fazê-lo completamente.

A primeira coisa a se perceber a respeito de O Tempo e o Lugar é que ele é, em essência, o filme que Coutinho se recusou a fazer no começo de O Fim e o Princípio (e a semelhança “filosófica”, digamos, entre os títulos dos dois filmes certamente não é mera coincidência). No filme de Coutinho, guiado por uma assistente social que acabara de conhecer e a quem delega o papel de anfitriã de uma narrativa ainda a se descobrir, o diretor se depara com uma série de personagens ligados à figura da moça por questões próprias ao seu trabalho: política de distribuição de terra, irrigação, perfuração de poços, questões sociais e econômicas envolvendo as cooperativas locais, enfim, pessoas cujo discurso não tem a autoconstrução íntima como foco, mas sim personagens que encarnam um certo espírito coletivo que poderíamos chamar, apressadamente, da “pequena política do interior nordestino”. Coutinho é radical na narração em off e diz com todas as letras que aquele tipo de discurso “não é interessante” para ele: mesmo que ainda não saiba que filme fará, àquela altura de O Fim e o Princípio o diretor percebe as armadilhas deste tema que salta à frente da câmera e escapa dele. O Tempo e o Lugar tenta, conscientemente, se equilibrar entre a exposição íntima e o discurso coletivo, um equilíbrio que vem da própria fonte do documentário, Genivaldo Vieira da Silva, ex-militante do MST, ex-membro da Pastoral da Terra, atravessado por uma série de acontecimentos históricos envolvendo a questão agrária em Alagoas, mas que o filme tenta perceber também enquanto este sujeito que, ao falar de sua inserção política no mundo, acaba revelando suas cicatrizes mais particulares, uma personalidade que a necessidade do ativismo social parece ter escamoteado, e que agora Escorel quer retomar.

Na prática daquilo que seria a investigação, em O Tempo e o Lugar, destes aspectos sociais tão peculiares do jogo de poder nordestino, entendemos porque Eduardo Coutinho se recusara a fazê-la, em seu filme. É uma seara que exige uma disposição interrogativa e um posicionamento entre a firmeza de propósitos e a maleabilidade no contato pessoal com os personagens que demanda uma preparação maior (e que Coutinho já tinha explorado, largamente, em Peões). Escorel encara essa “pequena política” em seus próprios termos, e não consegue extrair dali mais do que pequenez: em dado momento de O Tempo e o Lugar, percebemos que o máximo de sua percepção sobre este estado político e de sua intervenção sobre ele se resumirá a alimentar uma picuinha partidária entre o pai Genivaldo e dois de seus filhos, candidatos a vereador por bandeiras distintas. Um jogo infantil de idas e vindas entre um filho e outro, interpelações rasteiras sobre possíveis “traições” aos princípios defendidos historicamente por ambas as partes e a figura de Genivaldo, pendular e soberana ao mesmo tempo, pairando sobre os filhos como uma espécie de santo iniciador e referência política renegada.

Outra vez é inevitável lembrar de um momento do documentário brasileiro em que a presença histriônica e muito bem calculada de um filho politizado tentava suplantar a presença do pai (no caso, da mãe), serena e muito mais consciente do caráter historicamente construído de sua imagem. Na narração de Cabra Marcado Para Morrer há uma determinação clara de que tudo aquilo que o filho de Elizabeth Teixeira tenta vender como grandeza política não é mais que uma manifestação daquela mesma pequenez percebida no discurso dos filhos de Genivaldo. Mas, diferente de Coutinho, Escorel não se dá conta que a presença quase fantasmática desta prole “esclarecida” que tenta falar em nome da geração “sofrida e valiosa, mas ultrapassada” de seu pai, não faz nada além de constrangê-lo. Cabra Marcado espera pacientemente o filho sair de cena, para aí então iniciar seu corpo-a-corpo com a memória de sua protagonista. O Tempo e o Lugar impõe os filhos à cena, tentando retratar esse abismo de gerações como se fosse um simples jogo de intrigas e declarações contrárias organizadas uma depois da outra, criando um efeito especulativo muito mais próximo do sensacionalismo que da tentativa de compreensão de um estado delicado de relações.

Na outra ponta, quando tenta finalmente se aproximar de Genivaldo com inteireza, O Tempo e o Lugar escorrega novamente. Talvez ainda sofrendo os efeitos da picada da mosca auto-indulgente de Santiago (filme em que foi co-montador), Escorel tenta fazer do filme um estudo revelador muito mais de sua própria capacidade de amadurecimento no contato com o cinema, ao longo dos anos, do que necessariamente um trabalho devedor da figura que pretende registrar. Somos informados que o primeiro contato entre Genivaldo e Escorel se deu em 1996, quando este último fora a Alagoas filmar um dos filmetes publicitários da série Gente Que Faz, patrocinada por um banco. Mais que isso, assistimos integralmente a propaganda feita por Escorel, onde tentava vender Genivaldo como um agricultor bem-sucedido e altruísta na sua relação com os trabalhadores de sua região. Um segundo encontro, agora em 2004, revela que Escorel não esquecera da força daquele personagem e, munido de uma câmera e um microfone, parte para registrar um longo depoimento de Genivaldo, em que este detalha toda sua vida, um registro que Escorel imaginava ser fonte para um roteiro de ficção que nunca chegou a escrever. Em 2007, O Tempo e o Lugar seria o “acerto de contas”: não só com o personagem, mas com a própria evolução do olhar de Escorel sobre ele.

Não surpreende que, dos três registros, espalhados ao longo de mais de uma década, aquele em que a sintonia entre documentarista e documentado esteja mais afinada seja justamente o registro informal de 2004. É dali que saem os melhores momentos do filme e, curiosamente, também os que revelam a inabilidade de Escorel em lidar com seu conteúdo. Munido de uma tela de vídeo, o diretor exibe para Genivaldo trechos do depoimento tomado três anos antes. A imagem está granulada, pouco cuidada, e o tom é “direto ao ponto”: Genivaldo e o que sabe fazer de melhor, contar sua história de vida, com todos os detalhes pitorescos e francamente instigantes (escola de guerrilha com o Sendero Luminoso, luta armada, prisão, saques, invasões de terra, experiências religiosas e tudo o mais). Sempre que termina um trecho particularmente interessante deste relato, Escorel corta a imagem para o rosto de Genivaldo, três anos depois, agora bem vestido e penteado, sentado à mesa de frente para a telinha do vídeo, e envolvido por uma concepção fotográfica bem tratada, de cores vibrantes e um certo esfumaçamento quase mítico em torno do personagem que em muito se assemelham às imagens publicitárias de 1996.

Esse dispositivo tem um único propósito: o documentário pergunta a Genivaldo um incômodo “e aí?”, como que obrigando-o a ratificar, revisar ou criticar a si mesmo, na imagem descuidada e espontânea que acaba de ver. Incômodo não por forçá-lo a pensar sobre sua própria construção, mas sim por acreditar que todo o aparato disposto ao seu redor pode capturar alguma verdade secreta ou a “essência” do agricultor neste momento de contato consigo mesmo. Tiro pela culatra: por trás de toda essa confusão conceitual e inabilidade evidentes no trato documental, Eduardo Escorel revela que seu cinema não mudou tanto assim de onze anos para cá. O Tempo e o Lugar não deixa nunca de soar como um Gente Que Faz em longa-metragem, com o demérito de que não há qualquer obrigação comercial por trás dele e que esta tentativa de propagandear a importância de um personagem anônimo-mas-ativo-historicamente sempre parece dizer muito mais sobre a capacidade e a suposta “sensibilidade” do documentarista em “capturar” o que quer que seja do que necessariamente a tentativa de manter alguma frontalidade com Genivaldo e a exposição a que ele voluntariamente se submeteu. São nos pequenos trechos em vídeo quase amador, câmera e protagonista cara-a-cara e um entrevistador tão discreto que quase não o percebemos, que podemos vislumbrar o que O Tempo e o Lugar poderia ter sido se não acreditasse que é um filme muito mais profundo e visionário do que realmente é.

Rodrigo de Oliveira

 

 






No atropelo da "pequena política" e na tentativa de
realizar seu Santiago particular, Eduardo Escorel faz de
O Tempo e o Lugar
um exercício do desperdício
de um bom personagem