O NEVOEIRO
Frank Darabont, The Mist, EUA, 2007

“Você não tem muita fé na humanidade, não é?”
“Não mesmo.”


Darabont superior a Shyamalan? Em 2008, a resposta é sim. O excelente Fim dos Tempos que me perdoe, mas a ficção apocalíptica mais aterradora a aparecer por aqui este ano é O Nevoeiro.

No filme de Shyamalan, o vento nas folhas das árvores manifestava o suspense, a falta de resposta que era em si mesma a evidência dos fenômenos presenciados, a ocorrência da natureza em sua totalidade, simultaneamente tão próxima e tão distante de nós quanto possível, e o olhar do diretor recuperava um modo de apreensão integral do lugar do homem no universo herdado lá de trás, de Griffith, Stroheim, Sjöström. Em O Nevoeiro, o vento é menos sutil, e logo de início faz uma árvore invadir a casa de David Drayton (Thomas Jane), o herói trágico do filme de Frank Darabont. À semelhança de Fim dos Tempos, a questão em O Nevoeiro é confrontar o homem às forças naturais ou sobrenaturais que o precedem e ultrapassam somente para chegar mais perto dele mesmo. Daí os aspectos humanos serem responsáveis pelas maiores desavenças do filme, assim como a grande violência em jogo, a mais atroz, incurável e absurda, ser a violência provocada pelos homens e suas ferramentas de morte.

Primeiro plano de O Nevoeiro: David pinta um cartaz do cowboy Clint Eastwood. O anacronismo desse trabalho e do conteúdo lá inscrito já basta como cartão de visita. Mas na parede ao fundo, o mais revelador: outros cartazes, dentre eles um de The Thing (O Enigma de Outro Mundo, 1982), obra-prima de John Carpenter. “Por que não A Bruma Assassina?”, alguém pode perguntar. Ora, primeiro porque a bruma já está lá, onipresente, visível, não precisa ser evocada por alusão. Segundo porque Darabont percebeu, sob a névoa, um parentesco mais profundo com aquele que é o grande filme de Carpenter ambientado no fim do mundo. Citar The Thing pareceu-lhe inevitável, pois é disso que se trata, de expandir a idéia de apocalipse, de tragédia total, até as últimas proporções.

O Nevoeiro é adaptado da novela homônima que abre o livro Tripulação de Esqueletos (meu Stephen King predileto, ao lado de Jogo Perigoso). Tudo começa quando o vento traz uma misteriosa bruma a uma pequena cidade à beira do lago no estado do Maine (cenário bem típico de King). Depois, já envoltos numa atmosfera de estranheza, David e seu filho vão ao supermercado e, deparando-se com os primeiros indícios da histeria coletiva que dominará o filme, ficam presos lá dentro, junto a dezenas de outras pessoas, todas acuadas pelo nevoeiro. O decorrer dessa peripécia ficcional é comparável ao cenário quintessente dos grandes filmes de guerra: exigido justo aos limites de seu corpo e de sua mente, o homem será exposto em seu melhor (a coragem, a união, a grandeza de espírito) e em seu pior (a covardia, o medo, o desespero).

Darabont extrai do denso nevoeiro a própria matéria de sua mise en scène. A estratégia visual e narrativa das cenas de suspense se nutre das potências de ocultação e enigma contidas na névoa, que evidencia também o estado de obnubilação, de insanidade, de obscurecimento da razão a que os homens estão entregues. Que uma fanática religiosa (Marcia Gay Harden: seus olhos vidrados, seus lábios inchados proferindo as “revelações” bíblicas são a matéria viva de um acometimento histérico que diz respeito à própria percepção de mundo vendida por muitos daqueles que hoje se julgam os escolhidos, os faróis da humanidade) faça mais seguidores que o líder da parcela sóbria dos personagens é natural, num tempo em que a inteligência é exceção absoluta. Outro personagem que encarna com precisão aquilo que o filme deve combater é o vizinho de David: sua arrogância e seu ceticismo forjam clarividência lá onde tudo que existe é ignorância, cegueira, insensibilidade, estupidez. Diante da alienação que se propaga pelo ar, a batalha da lucidez e da consciência se prova mais difícil do que em qualquer outra época.

A uma variedade de personagens corresponde uma variedade de conflitos, e Darabont permite que cada um se desenvolva de forma concisa e sem prejuízo de intensidade, contrariando uma lei atualmente vigente no cinema de aventura, segundo a qual quanto maior é o filme, mais parece faltar-lhe tempo para o desenvolvimento das situações dramáticas e tudo se acavala numa vertiginosa queda rumo ao vazio. Através do zoom inquieto, das inúmeras panorâmicas e da constante variação da distância focal, Darabont, que nunca foi nem quer ser um inventor de formas (e se o cinema ainda é uma arte tão estimulante, é porque – ao contrário do que muitos pensam – não depende exclusivamente dos inventores de formas), construiu uma dramaturgia do caos invertendo a seu favor os clichês de tensão e instabilidade que estão em voga.

Na cena em que David hesita entre pegar ou não o revólver no capô do carro, o filme se depura na direção da mais sólida e poderosa tragédia, que nasce do momento em que o homem sela seu destino. Sem menosprezar os efeitos obtidos pelos monstros multitentaculares e os insetos gigantes, todos magistralmente concebidos, a grande porrada vem mesmo é com certos gestos demasiadamente humanos – como o soldado sendo esfaqueado e, claro, o desfecho inominável, que a câmera filma de fora do carro, prolongando, pelo recuo, o conteúdo emudecedor da imagem. Aquilo que Lovecraft atribuía simultaneamente ao ápice e à suspensão do horror, culminando no inenarrável, ganha ali sua melhor versão cinematográfica desde À Beira da Loucura (Carpenter novamente).

Que não se engane: O Nevoeiro é um filme vagabundo. Mas que fique bem claro: foi por causa de filmes vagabundos que, muitos anos atrás, aprendi a amar o cinema.

Luiz Carlos Oliveira Jr.