NOME PRÓPRIO
Murilo Salles, Brasil, 2008

É bem verdade que muita coisa mudou de Seja o que Deus Quiser! para Nome Próprio. Mas é igualmente verdade que o ponto de partida permanece o mesmo: abordar um estereótipo de juventude. A diferença está no método. Em Seja o que Deus Quiser!, Murilo Salles levou o estereótipo ao limite, caçando-lhe implacavelmente o que podia haver de vida. Em Nome Próprio, ele foi para o lado oposto, partindo do estereótipo porém preenchendo-o com a verdade de certas situações vitais. Essa verdade, não resta dúvida, é a da entrega da atriz protagonista, Leandra Leal, mais do que a verdade de sua personagem, Camila. Esta é ainda um trajeto rumo ao simulacro; ela passa o filme inteiro lutando justamente para ganhar vida própria, separar-se de sua imagem-matriz.

Menina de vinte e poucos anos, Camila é junkie, indie, egocêntrica, impetuosa. Os adjetivos cambaleiam, o que talvez seja sintoma do curto-circuito que o filme faz com a personagem. Ela tem caprichos demais para um estereótipo, para dizer a verdade – eis a carne que o filme lhe empresta. Camila sofre de um problema: o mundo em volta dela não é um mundo totalmente afeiçoado a seus desejos. É o mundo e ponto, impõe alteridade. Por conta disso, a primeira parte do filme se torna uma batalha. Camila (conscientemente ou, no mais das vezes, não) repele as pessoas ao seu redor. Espectador incluso. Precisamos aderir ao filme por causa e apesar de Camila.

Inegável o vigor de Leandra Leal. Mas inegável também que Murilo Salles, no geral, contenta-se com a escalação bem sucedida e apenas acompanha de perto esse trabalho da atriz. É uma certa tendência do cinema brasileiro: meses gastos na preparação do ator parecem poupar o diretor de um trabalho de encenação mais conciso. Basta documentar a entrega absoluta do ator. No entanto, algo me diz que os trabalhos de toda uma bela geração de atores brasileiros ficarão ainda melhores quando aliados a uma verdadeira construção do plano, do tempo e da movimentação. No paroxismo dessa idéia de que basta pôr a câmera no cangote do ator (vide a seqüência inicial de Nome Próprio), ocorre uma implosão do espaço cênico que é de todo limitante à própria atuação. Sobretudo num filme como Nome Próprio, em que a sensação física das locações é um ponto alto.

É curioso, tendo em vista a personalidade de Camila e o tipo de estratégia de Murilo Salles para filmá-la, que todos os demais personagens do filme pareçam mal atuados, mal caracterizados ou mal digeridos. Essa ingratidão com o restante do elenco (exceção à bela participação de Rosana Mulholland) revela a cumplicidade do diretor com a personagem. No fundo, o filme embarca numa certa santificação da egotrip de Camila. O blog dela se torna o mundo. Um mundo que se dá mais valor do que merece. Peguemos a cena em que um almofadinha vem cobrar o aluguel e ameaçá-la de despejo: há um campo-contracampo radical entre Camila – que se furta aos bens materiais em nome da necessidade de escrever, criar, dar vazão ao seu mundo interior – e o rapaz de terno engomado, que optou pela esfera “corrompida” do capital e da lei. Eles sequer podem dividir o mesmo plano, o filme precisa preservar esse lugar imaculado da jovem que constrói um imaginário, constrói um universo de artista sem a ajuda do dinheiro. É uma contraposição rasa demais, que só consegue entrar num filme uma vez que o diretor decidiu, de antemão, firmar um pacto profundo com a personagem.

Em interessante atrito com essa tendência alienante, o conteúdo do blog é originado pela experiência sensível de Camila, cuja crise advém justamente daí. Nome Próprio: ou da dificuldade de ter um corpo. Pois o corpo é o – incontornável – meio de acesso ao mundo e aos outros corpos. O processo de Nome Próprio, se pensarmos o filme como um processo, consiste na descoberta por Camila desse vale de alteridade, que fica dentro dela mesma e que lhe permitirá ser escritora, mas que precisa do conhecimento sensível (proveniente do corpo em contato com o mundo externo e com os outros corpos) para ser esclarecido, movimentado. O corpo, no fim das contas, se torna mais uma ferramenta a serviço do Ego. Diante da impossibilidade de viver com o outro, resta fazer falar uma representação interior desse outro. Ou abandonar o corpo e se tornar espectro. Nos bares ou boates que Camila freqüenta, uma música vaporosa, melancolicamente etérea, embala um desejo mudo de auto-sublimação (assim ninguém a perturbaria).

Murilo Salles, por diversas vezes, filma os atores de ângulos ingratos, muito de cima ou muito de baixo, muito de frente ou muito de dorso. As externas inexistem no filme, só há cenas de interiores. Uma recorrente grande angular distorce levemente o quadro. É de se pensar, em dados momentos, que Nome Próprio foi feito com uma webcam. Diria até que é menos aconselhável falar de mise en scène do que de identidade visual, pois o que Nome Próprio busca mesmo é um design, uma diagramação, mais que uma técnica ou uma inteligência cênica. O vocabulário em jogo é o da dissolução do cinema num universo de meios menos exigentes, onde o pressuposto da urgência e da impulsividade interdita o refinamento estético. Tudo isso leva a crer que o diretor foi atrás de um diálogo direto com o meio de expressão da personagem, logo estaríamos diante de um filme-blog inteiramente subjetivo e impressionista. Mas o ponto de vista se embaralha. Estudo de personagem e estudo de comportamento (são duas coisas completamente diferentes) se confundem. O primeiro corresponde ao que mais aproxima o olhar do criador de sua criatura; o segundo fornece a visão que o criador tem de sua criatura quando ela está dentro do aquário. Ir de um registro a outro é uma perigosa patinação no ponto de vista.

Que a cena de maior impacto dramático consista numa barata sendo esmagada por Camila diz algo: ela combate também, naquele gesto desesperado e violento, sua iminente identificação com um ser rastejante. Num momento bem posterior, ela volta de um bar se tropeçando e se vomitando até, finalmente, rastejar até o computador e pôr em palavras uma nova noite de desventuras. Tem uma força qualquer nessas palavras e nessas imagens, também elas situadas à altura do chão.


Luiz Carlos Oliveira Jr.