JUNO
Jason Reitman, EUA, 2007
 

Já se tornou quase um fato, para os mais variados espaços de discussão sobre cinema contemporâneo, que a comédia americana vive hoje um grande momento. Trata-se de um movimento de renovação de antigas normas do gênero, de incorporação de novos eixos temáticos/situações, de novos personagens/arquétipos; tão plural quanto diversas são suas linhas de frente – de Judd Apatow aos irmãos Farrely. Embora Juno não esteja entre os filmes apadrinhados por Apatow, Farrely ou outros que já angariaram a categoria de autores trabalhando dentro do gênero, ele não deixa de fazer parte do lote. Mais do que isso, Juno se insere no conjunto das novas comédias românticas em que o relacionamento do casal protagonista não se origina de uma óbvia atração mútua, ou de um romance em potencial, mas sim de uma espécie de acidente de percurso, e nesse sentido, Ligeiramente Grávidos é um de seus pares mais próximos.

Narrado de forma a deixar o espectador em constante questionamento em relação àquilo que está se passando e o que ainda está para acontecer, o filme arquiteta falsas relações de causa e efeito, desenhando uma linha narrativa com diversas ramificações pela qual se passeia sem saber ao certo o caminho. Em outras palavras, conhecemos Juno (a personagem principal, interpretada por Ellen Page), conhecemos suas motivações dramáticas, mas nunca sabemos de que forma responderá a elas, como agirá diante de cada nova situação que se apresenta. Distantes do esquematismo forçado de Pequena Miss Sunshine (filme com o qual guarda semelhanças do ponto de vista de sua carreira comercial), os personagens de Juno têm vida própria, agem indiferentes à nossa pretensão demiúrgica de compreendê-los inteiramente. E, dentro dessa lógica, o elemento cômico se desenvolve no filme também em cima do inesperado, partindo de situações inusitadas, dos atributos incomuns de seus personagens, dos comentários igualmente surpreendentes da protagonista sobre sua própria situação.

Logo no primeiro plano, nos vemos diante da imagem de Juno no jardim encarando uma poltrona enquanto bebe no gargalo uma garrafa de suco das proporções de um galão de gasolina. É nesse momento que a personagem começa a contar, em off, como chegou a esta situação. Vemos então uma série de planos detalhe e planos de conjunto (que nunca revelam o todo do espaço e dos corpos em cena), daquilo que desencadeou esse estado de coisas – a cena de sexo entre Juno e Paul Bleeker (Michael Cera). Essa maneira de apresentar o momento sem, contudo, revelá-lo em sua totalidade, é a única forma pela qual tornaremos a vê-lo ao longo do filme, sempre que a memória de Juno, ao contar-nos sua história, a ele retorna. Infelizmente, a utilização sistemática desses planos fragmentários sempre que quer apresentar novos personagens e espaços, de forma a não denunciá-los completamente à primeira vista - mas só a primeira vista - é uma característica constante na decupagem de Jason Reitman. Um tique de direção, enfim, que se em um primeiro momento – na apresentação de Paul Bleeker – funciona como uma fórmula já desgastada, porém eficiente, de trabalhar o aspecto cômico do personagem, a partir de certo ponto já aparece mais esvaziado de sentido. Apenas um mecanismo fácil para brincar por alguns segundos com a curiosidade do espectador.

Quando descobre que está grávida, após a tal transa com o amigo Bleeker, Juno acaba resolvendo dar seu filho à adoção. Sendo suficientemente seguro para trazer à tona a questão da gravidez adolescente se desvinculando da preocupação de levantar bandeiras, de se posicionar a todo o momento contra ou a favor de algo, tampouco realizar julgamentos de valor sobre seus personagens, o filme assume de maneira bastante clara (como poucos sabem fazê-lo) que não é um canal de mediação de teses político-sociais, mas sim uma construção narrativa para a qual os personagens são o ponto central. Por esse motivo, a importância da gravidez em Juno é medida apenas no impacto que causa em sua protagonista, em sua perspectiva de ver o mundo – e não simplesmente por sua ocorrência, mas pelo esforço da personagem em mesclar a todo o momento as experiências que extrai de sua participação ativa no processo de adoção à sua tentativa de compreender as complexas relações afetivas entre os seres humanos.

Ao ficar sabendo da notícia de que o casal que ela escolheu para adotar seu filho está para se separar, a personagem pára de encarar sua gravidez como um simples (e talvez até divertido) imprevisto, mas sim como uma válvula que a força a lidar com coisas “muito acima de seu nível de maturidade”. É o momento em que ela tem de tomar decisões, baseada na compreensão parcial e precoce que ela desenvolve do mundo das relações afetivas ao longo de todo esse processo. É assim que Juno vai modificando sua atitude sincronicamente à evolução dramática do filme – do humor sarcástico e defensivo ao desespero e, finalmente, à felicidade gerada pelo sentimento de completude. Somente quando percebe que pode ser feliz com alguém e ter seus filhos no futuro que Juno se sente finalmente segura quanto à decisão de dar esta oportunidade a Vanessa (a mãe adotiva, interpretada por Jennifer Garner), sabendo que um dia também será sua vez.

No fim das contas, Juno é um filme sobre o esforço de uma menina de dezesseis anos em compreender o mistério do mundo e em se reconhecer dentro dele, entendendo seus próprios sentimentos em relação à vida e às pessoas que a cercam. Ao fim desse percurso, ela descobre que para além de todo o ideal anti-romântico que paira na sociedade contemporânea, existe sim a possibilidade de encontrar alguém que, como diz seu pai (J. K. Simmons), a ame pelo que é, de bom humor, de mau-humor, bonita, feia, o que quer que seja. A pessoa certa que sempre verá “raios de sol saindo de sua bunda”. Enfim, uma possibilidade que não se encontra num mundo ideal, mas sim na aparentemente apática realidade cotidiana. Simples como as músicas de sua trilha sonora, o filme faz uma defesa sincera do amor, e se a conclusão desse rito de passagem vivido por sua protagonista é um estado permanente, aí já se trata de uma outra questão. O importante é que Juno é certeiro ao atingir o lado mais passional e vulnerável de seu espectador, afinal, não há descoberta melhor a se fazer, aos dezesseis ou aos quarenta anos, do que aquela que diz que o amor, este sim, é totalmente possível.  


Alice Furtado


 






Juno lidando com instâncias "muito acima de seu nível de maturidade".