FALSA LOURA
Carlos Reichenbach, Brasil, 2007

O primeiro e o último plano de Falsa Loura são idênticos: de um ponto bastante alto, a câmera gira em panorâmica sobre um bairro da periferia paulistana, uma paisagem amarronzada, com as casas se misturando indistintamente, uma arquitetura de ocasião moldada sobre um morro qualquer. Ao mesmo tempo em que estes dois planos emprestam ao filme um tom de realidade (de certo modo, até lembram a abertura de Rio 40 Graus, o anúncio de um ambiente geral, em plano aberto, como se fosse o mapa de uma localização que o filme não quer conhecer inteira, mas apenas buscar uma rua específica – ou no caso, uma história específica, personagens que um plano aberto não dá conta de perceber), a maneira como a câmera paira sobre esta periferia sugere também uma certa suspensão no ar, como se o filme inteiro fosse se nutrir desse ambiente sem nunca exatamente tocar o seu chão, mas sempre dois palmos acima, num espaço intermediário entre o mundo real e sua abstração completa.

Nada que Carlos Reichenbach já não tenha feito antes, é verdade. Este espaço intermediário é a própria casa de seus filmes, é onde nasce seu cinema – e podemos dizer com bastante certeza que é um espaço que ninguém ocupa de maneira semelhante no cinema brasileiro atual. Este é um lugar que abraça o clichê como a manifestação espontânea do modo de relação que certas pessoas estabelecem com a vida, e por isso mesmo sua transformação em cena, em imagem, não pode se dar pela exposição de sua tautologia, mas sim na tentativa de impregnar o clichê desta espontaneidade. A pergunta a se fazer a Falsa Loura não é, por exemplo, sobre o tipo de repertório musical e visual que as operárias paulistas experimentam em seu dia-a-dia, os cantores românticos, os ídolos inatingíveis, a iconografia que as cerca. A questão é saber o que há nesse universo que consegue preencher estas mulheres (e mais, esta mulher em especial, a protagonista Silmara) de tanta matéria-prima para seus sonhos, para seus desejos, de como a experiência do sublime pode se dar ali onde ninguém podia imaginar que existisse mais que um punhado de cafonices. Aquela suspensão no ar não é, portanto, mero traço de demarcação autoral: é a dois palmos do chão que Reichenbach encontra seus personagens, e é ali, e só ali, que pode existir essa sintonia entre pensamento e representação, entre o velho conhecido transmutado em surpreendente novidade. É como a seqüência em que Silmara (Rosanne Mulholland) sonha com seu ídolo maior, o cantor Luis Ronaldo (Maurício Mattar), num clipe musical que lembra os números de estúdio que Carlos Manga filmava na Atlântida. Enquanto a canção é dublada pelo cantor, caracteres com a letra da música aparecem na tela ao estilo karaokê, com uma bolinha acompanhando o andamento dos versos: cinema sing along, é preciso cantar (e viver) junto, embarcar no mesmo mar simulado com tecido azul.

Sobretudo quando se trata de um drama do destino como este aqui. O peso é histórico, as razões são socráticas, e não há qualquer saída aparente para esta sinuca entre o traço social (operárias que se imaginam Cinderelas, mas só até o expediente seguinte começar e o uniforme de trabalho substituir o vestido de cetim) e a própria condição feminina e sua insistência, ao mesmo tempo ingênua e firme de propósitos, em projetar na figura masculina verdades que o próprio homem sabe não compartilhar. Silmara começa o filme num regime de franca imunidade a isto que considera como desvios de sua independência e caráter. O tom adotado por Rosanne Mulholland quando Reichenbach nos apresenta a protagonista é o de uma espécie de vamp suburbana, devoradora de homens e incapaz de aceitar a submissão feminina, a pouca dedicação de uma colega em parecer sempre linda e radiante, a sujeição ao mais grosseiro flerte masculino. É uma postura que dura pouco menos de dez minutos. Talvez esteja aí aquilo que o diretor tem mencionado sempre como a contribuição de Mulholland à Falsa Loura: da mulher que inicialmente soa arrogante, preconceituosa, cheia de certezas que a colocam num patamar superior ao das pobres e feias companheiras de trabalho, só precisamos que finalmente chegue em casa, encontre o pai (primeira das cinco figuras masculinas que condicionam e revolucionam seu mundo) para que toda a máscara se desmonte. A figura fantasmagórica do pai, um ex-incendiário que carrega no rosto uma cicatriz que nunca o deixa esquecer seu passado (signo tomado de Howard Hawks, como bem observou nosso Luiz Carlos Oliveira Jr. na entrevista que fizemos com o diretor), de quem Silmara pacientemente cuida sozinha, está sempre por perto para anunciar que é de marcas como aquela que a filha viverá. Dignidade, é o que tem dito Reichenbach, trazida por Rosanne a uma personagem que todos pensam ser puta, e que o filme sabe que não pode reagir simplesmente elegendo-a santa: dar a esta mulher a representação visual de todas as fábulas que ela imagina para si, e quando finalmente o destino anunciado se apresentar, implacável, enxergar também esta dor como fábula, como espaço para o onírico mesmo diante da mais cruel realidade.

É preciso dizer que essa operação, recorrência no trato de Reichenbach com todas as mulheres que já retratou, chega em Falsa Loura algo modificada. Em uma das várias citações presentes no filme, aparece o fordianamente famoso “entre a verdade e a lenda, espalhe-se a lenda”. Carlão está aqui lidando com a sua própria lenda. Um dia, o diretor já foi conhecido como o realizador daquelas “pornochanchadas esquisitas”, em que se citava uma máxima de Proudhon no meio de uma transa (“a propriedade é um roubo!”, no ponto alto de Império dos Desejos). Em Falsa Loura, despido do pudor/culpa/asco que tem envolvido a imagem sexual no cinema brasileiro contemporâneo, um personagem dizer à protagonista um “beija meu pau” toma o mesmo caráter das máximas anarquistas contrabandeadas no meio de um filme da Boca do Lixo. É um cineasta único, que ligou a si uma série de imagens que sabemos pertencer só a ele. Quando, insuspeitadamente, virmos uma vestal de calcinha rosa e cabelos longos cobrindo os seios ao mesmo tempo em que recita um texto de Sócrates sobre a relação indissociável entre o prazer e a dor, não haverá espanto, mas uma espécie de conforto, um “ah sim, estamos num filme de Carlos Reichenbach”. Esta é uma condição ao mesmo tempo merecida e perigosa, e o diretor parece saber disso. Falsa Loura, por exemplo, tem um apelo urbano claro, mas será sempre no interior (aquele mesmo para aonde já fomos em Dois Córregos ou Bens Confiscados, para ficar nos anos recentes) que suas situações mais dramáticas ocorrerão. Mas há algo novo aqui. Muito porque, tanto quanto o prazer do reconhecimento, Falsa Loura nos preenche com doses iguais de pura descoberta.

A relação com Rosanne Mulholland é realmente especial, e em dois planos de seu rosto, closes em câmera lenta que mostram opostos de sua vida (um orgasmo, no auge do idílio, e a ressaca do sonho destruído), Reichenbach realizou duas das imagens mais impregnantes de toda sua carreira. E se fossem só os tributos à protagonista, eles já bastariam para colocar o filme entre seus melhores, mas há ainda um cuidado todo especial com os homens que a cercam e usam, justamente estes que o cinema brasileiro contemporâneo não cansa de vigiar e punir, mas que Reichenbach percebe como manifestações merecedoras de igual dignidade – há um plano aberto do show da banda de Cauã Reymond que vai se fechando no rosto do ator, até que percebamos em seus olhos uma fúria e uma intensidade que nunca imaginamos possível, e um outro, do filho do personagem de Maurício Mattar, uma descoberta de elenco incrível, que por pouco não tornam o filme porções iguais de falsas louras e louros também.

E não poderia ser diferente. Nesse universo que parece eternamente reprodutor de uma lógica de exploração do sonho feminino em nome da saciedade do desejo masculino, onde esses olhos tão inocentes de um menino que está prestes a perder a virgindade ecoam inevitavelmente nos olhos raivosos daquele cantor jovem e inconseqüente, como se fossem pontas distantes de uma mesma corrente, a ordem das encenações se inverte. Instalado neste peso histórico, já condenado de princípio a mercantilização do sentimento (“eu sou um contratado avulso, como você”, diz o motorista de Luis Ronaldo à Silmara), como uma verdade tácita e irrevogável que, no entanto, parece escapar da visão francamente encantada que a protagonista tem do mundo – uma visão conquistada, não-automática, cujo despertar percebemos ao longo do filme – Falsa Loura é mágico por pura necessidade de reação. Abusar do direito de ficcionalizar, ir a fundo na dramatização, tornar todo traço psicológico um traço físico, aparente, uma imagem, enfim, já não é apenas uma marca registrada de Reichenbach: é o único jeito de reverberar no filme aquilo que o prólogo escrito na tela logo no começo anuncia. Contra a insistência da dor, doses cavalares de puro prazer. Prazer em acompanhar uma trajetória de vida, mas também em filmá-la em toda sua singularidade. Quando finalmente retornarmos ao plano geral da periferia paulistana, sobreposto ao rosto de Silmara, cabelos ao vento, lágrimas borrando a maquiagem, a alquimia entre a ilusão e o pragmatismo estará finalmente completa. De quantos filmes, atualmente, se pode falar que não só tratam, mas materializam em imagem, árdua e conscientemente, aquilo que chamamos de Vida, com letra maiúscula e todas as implicações aí conhecidas? Não são muitos, não.

Rodrigo de Oliveira

 

 






Um drink de menta que, "magicamente", passa a iluminar com
sua cor toda a cena: em Falsa Loura, todo traço psicológico
precisa se materializar em traço físico, em expressão
dramática visível