UM BEIJO ROUBADO
Wong Kar-wai, My Blueberry Nights, Hong Kong/China/França, 2007

Um Beijo Roubado é, em essência, um filme “pós”. Pós a consagração de um estilo, pós a absorção de uma individualidade autoral pelo mercado, pós a exploração profunda de um universo temático. Após assistir a 2046, de fato nos perguntamos: o que Wong Kar-wai fará depois deste filme? 2046 trazia em si uma aura de fim de ciclo, uma grandiosidade operística catártica desejosa de abranger o máximo de tudo o que ela se dispunha a trabalhar: o máximo do sentimentalismo, o máximo das cores, o máximo do enquadramento virtuosístico, o máximo do fetichismo do olhar apaixonado, o máximo do trabalho dos atores, e por aí vai. Vem então a pergunta já colocada certa vez por nosso Ruy Gardnier em forma de artigo: o que fazer após a perfeição atingida?

Para Wong, a resposta pareceu antecipar-se através de um contrato para realizar três filmes nos Estados Unidos. Outro cenário, outros tipos humanos. Mas o nome Wong Kar-wai já havia se tornado uma marca. E talvez o realizador por trás dela tenha se tornado por demais refém do consumo de signos que afeta de forma um tanto violenta a produção audiovisual. De uma forma ou de outra, o que vemos em Um Beijo Roubado é um autor tentando lidar com o peso de sua própria obra no imaginário cinéfilo e com a carga “mercadológica” adquirida à sua revelia por sua estética imponente.

E talvez ele não tenha se saído tão mal assim. Instalando-se nesta nova paisagem cultural que é o EUA, Wong escolhe re-editar seus próprios clichês, agora com outros atores e outra língua. O mundo continua o mesmo: encontros e desencontros, afetos e desafetos, felicidades e tristezas, perdidos na aceleração cotidiana da cidade. E estranhamente “o mesmo”: personagens trabalhando em lanchonetes e bares, que em sua vivência diária testemunham fatos marcantes de relacionamentos alheios, como em Felizes Juntos ou Amores Expressos; o jogo como triste escapismo e metáfora para o acaso que rege a vida, como em Amor à Flor da Pele e 2046; medidas numéricas de tempo e espaço como ironia em relação à completa abstração dos sentimentos, como em Amores Expressos e 2046, e por aí vai.

Mas onde estaria o sentido de repertoriar a si mesmo, se não apenas na criação de um objeto vendável portando uma marca? A resposta está na própria forma como Wong trabalha a visualidade de Um Beijo Roubado: a obstrução do da visão do objeto em diversos planos, para além do desenquadramento e dos ângulos voyeurísticos (que marcam o magnífico trabalho com o cinemascope de 2046); a multiplicação injustificada das distorções de movimento pela câmera lenta e pela alteração da velocidade do obturador; a exacerbação do fetichismo ao ponto do esvaziamento de sentido, tanto materialmente, com as chaves e a torta, quanto visualmente, com os signos urbanos saturados de cores e formas. Tudo isto parece apontar para um auto-questionamento do registro estilizado. Não à toa somos surpreendidos pela súbita revelação de que o ângulo em contra-plongée da lanchonete de Jude Law é o “ponto de vista” de uma câmera. Uma câmera com defeito, que altera instavelmente as cores como se aplicasse filtros à imagem. Não, não se trata de uma câmera de vigilância no sentido a que estamos acostumados (já que ela não pode impedir nem prevenir roubos ou brigas), mas de uma câmera de “vigilância afetiva”, que registra tudo para garantir que gestos e rostos escolhidos possam ser re-vistos. Mas como tudo em Wong carrega a marca do tempo, a medida do desejo de revisão é a do apagamento: depois de muito assistir a uma fita, ela vai perdendo a imagem, até restarem apenas borrões e chuviscos.

E não seria Um Beijo Roubado um filme de diluição da imagem no sentido contrário ao de 2046, que era o da abstração progressiva? Diluição por saturação barroca. Na América saturada de signos e de produtos, em que a alma volta-se invariavelmente para o consumo, os sentimentos parecem um pouco fora de lugar, tornam-se adereços de espaços e ambientes característicos e bens equivalentes a carros. Resta então à crônica sentimental perder seus traços de originalidade do acontecimento e se dedicar à apresentação das coisas. A estética se divorcia do intuito narrativo; desvia-se da tradução de situações emotivas para uma pura intensificação dos efeitos. O resultado é um filme em que os relacionamentos ocupam ainda um lugar central, mas mais como dado a ser levado em conta do que como intensidade de momentos e interações. E os malabarismos visuais roubam a cena e afirmam sua primazia.

Em suma, Um Beijo Roubado é um filme de plástico, no que isto tem de positivo e de negativo. Ao mesmo tempo em que assistimos a um verdadeiro pot-pourri bem embalado do repertório do autor, em que o real sentido das coisas foi esvaziado, temos a impressão de que Wong tentou (talvez com um quê de ironia) transformar seu estilo em gênero, para melhor lidar com o universo americano e com sua nova posição no mercado cinematográfico. Tudo se encontra mais leve e mais palatável, a tristeza e a agressividade das pessoas estão aliviadas, a distância é mais um elemento de jogo do que uma inevitabilidade da vida, as pessoas vão e vêm sem muita dor, o beijo tem mais valor de celebração do que de contrato afetivo, e um final feliz aguarda os personagens ao fim da projeção...


Tatiana Monassa