CINEMA FALADO, PARTE 3
Jogo de Cena

TM: Sobre atingir um ponto de impossibilidade da própria obra, eu acho de fato que Jogo de Cena é a resposta a O Fim e o Princípio.

RG: Jogo de Cena é uma resposta ao modo como muitas pessoas viam o cinema do Coutinho. Primeiro porque todo o cinema dele se baseava em algo que as pessoas nunca falaram, que era na idéia de mise en scène, só que a mise en scène transformada num esqueleto. O que é mise en scène? Movimento de câmera, escolha do enquadramento... quando pro Coutinho isso nunca funcionou. Ao contrário: estava sempre muito bem escolhido, mas estava escondido atrás de uma coisa totalmente humilde e sutil que era basicamente o enquadramento de uma pessoa, de um talking head. No entanto, me parece que Jogo de Cena explicita algo que sempre esteve lá e que não é algo que nunca ninguém tinha falado, mas é algo que explicita que no fundo não é importante o grau de verdade do que está sendo falado. Não é nem essa primeira verdade, que é a verdade como adequação a algo que aconteceu, nem a verdade da coisa acontecendo, mas é o simples ato de performance. É o simples ato de se filmar alguma coisa e de se extrair algum momento de intensidade daquilo que está acontecendo. Eu acho que Jogo de Cena é um filme em que isso está mais explícito, mas ainda assim o filme não é só isso. O filme tem um nível de trabalhar a relação com o espectador, na forma de familiarizar o espectador com um certo modus operandi. Depois, ao longo do tempo, quando menos você espera, ele já altera isso e, sem que você perceba, ele já foi pra um outro registro. No fundo você dava como dado o discurso real de uma personagem que, só porque você não conhecia o rosto, surgiu como um discurso de verdade, porque pareceu que era uma pessoa anônima e uma pessoa anônima nunca vai parecer com uma atriz, mas ao mesmo tempo você coloca uma atriz falando uma coisa da vida dela e isso parece como um discurso encenado. O que ele faz é ao mesmo tempo instituir um certo chão pro espectador e tirar esse chão. Ao final, o filme se reduz ao fato de que basicamente são pessoas e pouco importa o grau de realidade, ou de encenação, o que importa é simplesmente o fato de que isso foi filmado e de que isso em alguma medida faz diferença. O correlato um pouco do Serras da Desordem no sentido de refazer o tempo inteiro a relação que se faz com o espectador. Qual é o último plano do Serras da Desordem? É colocar o próprio Andrea Tonacci dando ordem de encenação pro índio, dizendo que, de alguma forma, ele mesmo está repetindo um grau de manipulação. Só que o Coutinho joga isso em um outro nível, fala que o que importa não é a manipulação, o que importa não é pra onde o diretor leva o filme, o que importa é que alguma coisa acontece nesse processo. É a ação acontecendo em ato, enfim, é o filme acontecendo em ato, muito mais do que algum tipo de preparação, o que me faz compreender, como nenhum outro filme do Coutinho, porque ele fala que o único filme que influencia ele é A morte de Empédocles do Straub, e mais nenhum outro. Que, basicamente, é alguém que está interessado na coisa acontecendo e em como um certo som sai da boca de um personagem, e como isso é registro e filmar, basicamente, é modulação de ensaio, é você incorporar uma série de produtos que podem vir do acaso, mas que você, em algum momento, sugere uma experiência. E na filmagem o seu filme é uma coisa e na montagem é uma depuração; é você escolher aquilo que você decide entrar no seu filme e aquilo que você descarta.

DC: O tema do filme é, sem sombra de dúvidas, fazer com que a gente questione aquilo: o que é a verdade? Que é dita ou não.

RG: Esse eu acho que é o primeiro interesse do filme. O filme tem um interesse secundário, que é muito superior.

DC: Tem que tentar juntar esses dois interesses pra tentar ver, porque, na verdade, o que me parece é que o filme tenta pensar não na verdade na história que é contada ou da pessoa que fala, mas, sobretudo, de quem recebe. Então, na verdade, eu acho que o grande tema do filme, o grande interesse do filme é o espectador, é quebrar a relação do espectador com o que é a verdade. E daí, sim, trabalhar, fazer-nos pensar: em que medida eu posso me emocionar com o que eu sei que não é verdade, com o que eu acho que é verdade e com o que me deixa de parecer que é verdade? Ou seja, na verdade, é o documentário tentando questionar de que maneira você exige acreditar numa verdade, ele está pensando nesse limite do espectador mesmo.

RM: Mas eu tenho a impressão de que todo esse processo que você falou se dá muito no início do filme, num primeiro momento, num primeiro impacto com aquelas histórias. A partir do momento em que você vê, já deixa de importar se é uma atriz, porque aquela história ela se torna, não sei se verídica, mas verdadeira, num sentido de que pode ser a história daquela pessoa mesmo, pode ser uma história contada por alguém ou vivenciada, sei lá, não interessa, mas é uma história passível de existir. Se não existiu, poderia ter existido, e é uma história quase verossímil.

BB: Só o fato de contar já a torna verdadeira.

LCOJr: A verdade é que o Eduardo Coutinho é muito mais straubiano do que a gente achava que ele é. Não é a verdade da fala, não é a verdade da vida, é a verdade da presença, é a verdade do registro.

TM: É a verdade da performance.

DC: É a verdade da cena, é a verdade de quem olha.

RG: A presença é o Acidente, do Pablo Lobato e do Cao Guimarães. Jogo de Cena é um filme sobre a presença, mas no qual há, sim, a idéia de uma ação definitiva.

LL: É uma ação pra uma câmera ligada que você sabe que está filmando. É um contar uma história pra uma câmera ligada.

TM: Não, é performance porque não é qualquer um que pode ser um personagem do Coutinho.

RG: Tanto que ele é extremamente seletivo.

TM: Por isso que é uma performance. Não é o simples existir daquela pessoa diante da câmera. É de que forma aquela pessoa se manifesta. A força que ela tem.

DC: Vocês estão esquecendo de uma coisa importante. Deixa eu te dar um exemplo: tem determinados momentos em que ele coloca uma atriz e só no final ele vai botar aquela que parece ser a dona do depoimento verdadeiro, lá, depois de muito tempo. Então aquela que você viu no início, você fica achando: não, aquela lá deve ser verdade. Importa sim. Na hora que você vê aquela lá, você diz: nossa, eu fui enganado, é uma atriz. Não é só a performance, é o olhar da performance. Ele está questionando, sim, o posicionamento do espectador. Porque ele também constrói ao longo do filme uma crença.

LCOJr: Não é à toa que ele constrói o enquadramento lá com as cadeiras vazias. O lugar do espectador está espelhado lá no filme.

RM: O filme tem outra coisa importante, que é um guia: todas as histórias obrigatoriamente têm uma relação de maternidade.

LCOJr: Eu vi o filme hoje, estou muito cru ainda. Mas me ficou uma impressão de que ele não levou às últimas conseqüências os efeitos de estrutura que o filme permitia. O potencial de um filme calcado em efeitos de estrutura, em efeitos de dispositivo, não está levado aos seus limites, e o filme acaba aquiescendo a um certo sentimentalismo que não me parece contribuir tanto para o que o filme tem de melhor.

RG: Eu acho que ele esgota a estrutura com meia hora e, na outra hora seguinte, ele vai pra todos os outros lugares possíveis.

LCOJr: Mas ele faz o quê? Quais são esses outros lugares?
 
TM: Pra mim ele reforça exatamente o que ele já fazia no Edifício Master, que é a emoção das histórias, que é aquela abstração da fala valer mais que qualquer outra coisa, e você já esquece quem está falando, não importa. Importa que você se projete naquelas histórias, que você se identifique, não se identifique, que você se emocione. E eu acho que todo o dispositivo se apaga diante disso.

LL: Eu não acho que ele esgota a estrutura em quinze minutos. Eu acho que ele desiste da estrutura em quinze minutos, porque o interesse dele passa a ser a performance como era o interesse dele em quase todos os filmes.

RG: A operação que eu acho que ele faz diferente dessa vez, é que na primeira meia hora ele solapa todo tipo de adesão naturalista que os outros filmes suportavam, de alguma forma. E, nesse sentido, eu até concordo um pouco com o que o Daniel fala no sentido do espectador, porque de certa forma, me parece que é, sim, um pouco um filme sobre aquele espectador. Que ele faz esse filme um pouco para aquele espectador que fica rindo do Edificio Master, porque os personagens são inteiramente pitorescos. Porque claramente ele está interessado no personagem sob outro aspecto. E o que eu acho que o filme vai fazer nessa meia hora e que ele só capitaliza na outra hora seguinte, na primeira meia hora ele cria um efeito de abstração, da relação com a verdade ou não, que eu acho que, de alguma forma, se isso fosse o interesse principal do filme, isso estaria colocado lá pra uma hora e dez, uma hora e vinte, pra criar uma grande virada. Isso não está, isso é dado logo nos próprios efeitos de estrutura do filme, e o filme vai fazendo isso até o final.

LARM: Eu acho que tem um plano que é extremamente complicado nesse filme, que é a primeira entrevista, da menina do Nós do Morro. É a entrevista mais estranha pra mim. Ela é a primeira, ela é sobre maternidade.

LL: É a história da Medéia.

LARM: Primeiro ela se coloca como uma coisa de mitologia grega, etc e tal, depois, ela é um negócio completamente fake e não-fake, e você não consegue identificar onde é que está fake e onde que não está. Ela é um negócio que não te ganha de início, eu não fico convencido, e, logo no início, ela é uma síntese, eu acho, desse trabalho, que é uma coisa indefinível, eu acho que isso que ele está desejando com esse filme é indefinível. Isso pra mim está nesse primeiro plano, que é um plano que resume todos os outros. É uma atriz que está ali. Aquela história que ela conta é uma história em que eu não consigo ver verdade, e ao mesmo tempo ela chora, quer dizer, todos os temas estão ali.

RG: Uma coisa que eu achei impressionante é que vendo duas pessoas discutindo sobre o filme, eventualmente vai haver uma divergência enorme, quanto à qual atuação ser boa ou não ser boa. Que no fundo é empatia, ou não é empatia, e tem certas deixas que você está acostumado a aceitar como realistas ou naturalistas, como boa interpretação, e coisas que não estão, e de certa forma o filme, não sei nem se isso estava no coração do filme, mas o filme acabou suscitando isso como uma espécie de epi-fenômeno, que é essa coisa do bem atuar, ou do mal atuar, do ser convincente, ou do não ser convincente, que eu acho que o filme abandona ali nos primeiros quinze minutos.

LCOJr: Eu só não acho nada de especial. Da mesma forma que eu senti falta dos efeitos de estrutura, por outro lado, também, não fui arrebatado por grandes epifanias.

LARM: Esse filme coloca, explicita, primeiro, o Coutinho como ator, isso eu acho que é importante, ele também é ator. Aquelas perguntas, aquela espontaneidade fake, vamos dizer assim, do Coutinho, que já pega um briefing total da pessoa, que parece que ele é um cara que saca muito bem a pessoa e faz a pergunta certa na hora certa e corta no ponto certo, quer dizer, aquilo ali é um roteiro. Isso eu acho que é interessante, acho que se há uma performance em primeiro plano, eu acho que é a performance do Coutinho, seja do enquadramento, seja de tudo.

RG: Eu acho que é a performance de existir ação, no sentido de existir uma câmera ligada e coisas acontecerem impulsionadas por isso.

LARM: Segundo, ele explicita o quanto a gente ainda está preso a uma questão que é muito primária, mas que é a questão “eu estou imitando bem isso?”. E aí tem até a ver com aquela primeira discussão que a gente estava fazendo do Tropa de Elite, quer dizer, “está bem imitado, está parecido?, é assim?”. Nesse sentido, se você conhece a pessoa, você exige dela uma boa imitação. E aí a Marília Pêra é interessante porque da primeira vez, eu vi o filme duas vezes, a primeira vez eu não gostei da Marília Pêra, a segunda eu gostei justamente porque ela não tinha nada a ver com aquela personagem, justamente porque ela não assumiu aquela personagem.

BB: É engraçado, eu vi o filme duas vezes e a primeira vez eu passei meio batido pela Marília Pêra e da segunda vez eu tive certeza que o Coutinho dá a entender que não gosta nela, e eu acho que não gosta. É que ela não tem um certo respeito pela personagem que ele queria que ela tivesse.

LARM: Mas eu acho que essa falta de respeito pelo personagem faz crescer o personagem da Marília Pêra. Ele justamente questiona o fato que a questão não está na verossimilhança, na imitação, e é incrível, porque o filme coloca isso e explicita o quanto o espectador está preso a isso, do Tropa de Elite ao Jogo de Cena. É um modelo que está sendo questionado.

BB: A única entrevista que não é montada repetindo as frases, não complementando, é a da Marília Pêra.

LARM: O negócio do comunista, não é a mulher que fala, é a Marília Pêra.

TM: Pra mim o filme tem um aspecto freudiano que me chama muito a atenção. A coisa das personagens subirem por aquela escada escura, pra chegar lá e é como se elas sentassem no divã, quando elas sentam naquela cadeira diante do Coutinho, e ali elas podem se abrir, seja da forma que for, da forma performática também.

DC: Eu não to entendendo porque você está ligando isso ao Freud, porque, na verdade, ninguém está lá pra ajudar as mulheres.

LCOJr: Tem um lado catártico ali também. Eu acho o dispositivo super complexo. Ele sublinha o fato de que tudo aquilo é muito lacunar, que você não viu nenhum depoimento na íntegra, que você viu nacos de todas aquelas performances, o filme sublinha isso bastante. Ele filma algumas das mulheres, não todas, subindo a escada, o filme tem uma construção de luz muito precisa, uma escolha do quadro muito precisa, todo um simbolismo envolvido, na própria idéia da pessoa sentar ali, com aquela iluminação x, sobre um palco, tendo cadeiras vazias de um teatro ao fundo. Tem todo um simbolismo muito estranho, toda uma relação de transferência, que confesso que pra mim ainda está muito enigmática. Acho até que parte da boa relação que eu tenho com o filme vem daí

BB: E até isso que você falou no início que achava que ele iria mergulhar mais fundo na estrutura e ia ser mais radical nisso, eu não sei, eu tive essa impressão também a primeira vez que eu vi, só que eu fico pensando que, a partir do material filmado, mas pensando na montagem, é que se ele levasse mais a fundo, talvez ele sublinhasse muito o jogo do título, passasse a ser muito um jogo com o espectador. E aí eu concordo exatamente com o que o Ruy e o Rapha falam que ele esgota isso em 15 minutos, aí ele põe em crise a palavra, a fala e a palavra, que eu acho importantíssimo, que é meio o que embasa o cinema dele, e reafirma a sua fé nela na outra uma hora. Não sei, por isso eu acho que eu me contentei com o fato dele não ser tão radical.

TM: Ma eu acho que tem um reforço desta questão catártica, pela própria forma como ele constrói a emotividade, enfim, dramaticamente mesmo, como é que ele coloca isso, como é que ele corta de uma história pra outra, como é que ele começa a criar recorrências, enfim, essa recorrência temática. Na verdade, eu acho que ele está muito mais interessado em criar esse drama, do que propriamente nesse jogo.

LCOJr: É que, realmente, o jogo se torna rarefeito. Se por um lado todas as mulheres choram, por outro não há uma armadilha. Você não pode dizer que o dispositivo dele era uma armadilha e que elas caíram nessa armadilha e daí você extrai esse melodrama. Esse enigma é muito interessante.

RM: Mas do mesmo jeito que a Andréa Beltrão foi pega e acabou se comovendo e tinha que se controlar pra não chorar, quando ela achou que a melhor representação seria não chorando, e tal, eu acho que tem uma relação próxima com a do espectador também, que você também não sabe se posicionar: é verdade, é mentira, no final de contas você acaba se envolvendo com aquela história, pelo menos é assim que eu sinto o filme. Na minha sessão, as pessoas choravam muito.

LCOJr: Edifício Master tinha uma coisa muito interessante, que gerou desde os melhores até os piores debates, que era a questão de que cada personagem, cada nuance dos personagens levava o espectador a uma reação tal e isso oscilava desde a simpatia completa até as maiores antipatias, as pessoas tinham raiva de certos personagens. No Jogo de Cena, isso está ausente, você não tem um discurso ao qual reagir, ou se opor, de cara, de imediato.

RG: É. De certa forma, o filme não tem essa idéia de um painel multifacetado como em todo filme do Coutinho.

TM: Ele é um painel unifacetado

LARM: Não no cinema inteiro dele.

RG: De Santo Forte pra cá.

LCOJr: Sobretudo Santo Forte e o Master.

RG: Que são os filmes mais bem resolvidos. Não, eu acho que Peões também trabalha nesse sentido, de painel multifacetado. Em Peões também, mas ele tenta ser mais construtivo. Construtivo no sentido de criar efeitos que não são só criar um universo em que muitas coisas distintas acontecem. O que me parece é que em Jogo de Cena é o contrário, ele cria efeitos da mesma forma como existe uma... e talvez eu diga que é a segunda operação do filme, num dado momento o filme até ultrapassa isso, mas essa questão que no fundo é algo que me perseguia e que eu acho que é uma das forcas do filme: na verdade existe um trabalho das mulheres que não são atrizes, em falar alguma coisa, em significar alguma coisa que seja potente, e, na verdade, esse trabalho pode ser diferente no tipo de procedimento, mas ele é muito semelhante no sentido da atriz de transformar aquele discurso em interpretação, que também é trabalho. Eu acho que a maneira que ele tem de muitas vezes, de forma distintas, ir fazendo o paralelismo e criando situações distintas, criando situações que só vão acontecer uma vez e a gente não tem um correlato, entre aspas, real, ou um correlato, entre aspas, encenado, de criar esse tipo de questão, que no fundo, o que resta é um trabalho que existe ali, e um trabalho que produz efeitos, e efeitos que eventualmente podem cativar alguém.

LCOJr: Mas a complexidade do Coutinho pra mim, o que me cativa no cinema dele, está justamente aí, que não é uma arapuca, existe toda uma intensidade de luz, existe todo um trabalho ali, do próprio Coutinho, com a triagem que ele faz, com a pré-entrevista que existe forte no cinema dele, declaradamente. Tudo isso tenderia pra você ver um filme que é uma armadilha onde as pessoas vão cair, vão atingir aquele efeito dramático, performático, aquele efeito de confissão, seja lá o que for, que ele está desejando, e isso vai dar o que ele precisa pra construir o filme dele. Só que não dá, porque no fundo não é bem isso que acontece. A minha crítica ao cinema direto sempre foi essa. Para mim, por mais que houvesse todo um discurso ali de você deixar, de você simplesmente criar um campo de imantação, um campo que vai se abrir para absorver de forma competente os esguichos do real, no fundo pra mim sempre houve no cinema direto algo como você jogar a isca e o personagem fisgar e você trazer aquilo pro seu filme. O Coutinho não tem nada disso.

BB: O Coutinho é o oposto disso.

LCOJr: Mas ele monta. Os filmes dele são bem arquitetados, os filmes dele são arquitetados como dispositivo. No entanto, você também não tem uma arapuca. Esses brotamentos de melodrama do cinema dele se dão num nível que pra mim ainda é um nível de complexidade muito interessante.

LARM: Eu acho que uma questão muito interessante que você falou foi essa de que, a princípio, não se entra em conflito com nada daquilo. Isso eu acho que é uma coisa a se pensar.

RM: Mas isso aí é quase um mérito, quer dizer, sei lá se é um mérito, um acontecimento de montagem... Porque eu tive acesso a quase todo o material bruto, fiz a decupagem do filme e muitas vezes você se estranhava com alguns personagens. Óbvio que eu tenho uma visão do filme diferente, até porque eu já tinha um contato com aquilo, mas eu acho que parte de não ter, por exemplo, essa panorâmica dos personagens, é decorrente de se debruçar nesse viés narrativo, nesse guia narrativo e emocional também, da maternidade.

TM: Eu acho que ele cria uma única história na verdade. Você sai do filme e existe uma única grande história que todas as mulheres contam, que é a relação com o pai.

LCOJr: Mas, ao mesmo tempo, isso que o Rapha falou é interessante, porque ao mesmo tempo, sim, o filme peneirou isso. Mas ele coloca lá, ele inscreve numa parte crucial do filme pra mim, que é quando a Fernanda Torres diz que ela fez questão de não ver a entrevista decupada, a entrevista já editada, preferiu o material bruto porque achava que ele ia construir uma espécie de memória da personagem dela. O material bruto ia construir uma espécie de constelação, um céu que estaria sobre ela e, na hora em que ela fosse fazer a performance, estaria lidando com esse material bruto inteiro, essa constelação inteira a todo tempo. O filme faz questão de pôr essa parte, por isso que eu digo que o filme faz questão de dizer, de jogar pra uma lacuna muito grande, pra uma ausência muito grande. Essas mulheres na verdade parecem estar falando na verdade sobre um único tema, porém, esse filme partiu de algo que vai pra muito mais do que isso, existe muito mais coisa, existem muito mais coisas que estão ausentes do filme. Acho muito curioso que o filme tenha colocado isso numa cena que pelo menos pra mim chama tanta atenção, que é quando a Fernanda Torres traz pro filme essa idéia. Tem muita coisa que ficou de fora.

RM: Isso é interessante também porque, apesar de ser um filme-dispositivo e tal, ainda tem o dispositivo próprio de cada atriz, que cada uma a seu modo vai trabalhar de maneiras diferentes ,e o filme meio que traz isso pra dentro do seu processo também. E ainda assim, com toda essa força, com todos esses processos existentes, você ainda acaba se emocionando e se voltando praquela historia que se conta. É uma complexidade grande.

RG: O que me cativa, acho que talvez mais do que qualquer outro filme do Coutinho, e que é um tema que eu persigo, num texto corrente que eu estou fazendo, é a questão da enorme dificuldade que o cinema tem de filmar no presente, de filmar o presente, porque a princípio o cinema narrativo trabalha com uma idéia de que se envolve um certo número de coisas que se sabe do passado e a idéia de que se aponta pra um futuro, porque a própria idéia de narrativa está implicada na idéia de causa e conseqüência e de um certo número de premissas e um certo número de ocorrências que partem dessas premissas. E Jogo de Cena é o filme em que talvez o dispositivo sirva mais de pretexto pra coisas que ele quer conseguir do que pra estruturar o filme. Desde o começo, ele deixa muito claro que basicamente o que existe é o presente acontecendo. E o presente é o ato de se ligar a câmera e pronto. Existe um trabalho diante da câmera que não precisa mais do referente que o embasa, que é um vinculo, entre aspas, ideológico, que você podia atribuir a Santo Forte ou a Edifício Máster. Por isso tanta bibliografia, tanta página branca que foi gasta falando de como ele entrevista bem, de como ele sabe escutar, de como as pessoas têm uma vida impressionante. Não é nada disso, nunca foi. Em Jogo de Cena, ele mostra que existe um presente cinematográfico e existem várias formas de aceder, eu acho que de certa forma Straub acede a isso, pelo menos desde os anos 70, e de certa forma o Lynch faz isso por maneiras totalmente transversas no Império dos Sonhos.

LCOJr: É verdade. São filmes que podem muito bem ser trabalhados em conjunto.


Parte 1: Sociedade em descontrole: Tropa de Elite, o filme e o fenômeno

Parte 2: Universos sob controle: Baixio das Bestas e Santiago

Parte 4: Um novo gênero? / Ficções cansadas

Parte 5: Cão Sem Dono

Parte 6: A juventude brasileira não se pertence

Parte 7: Justo uma conversa: Conceição

 
 






Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho